Bem-vindos


a este vosso novo Blog, tratem-no bem ou mal conforme merecer, mas por favor reajam, participem. Iniciá-lo-emos com a publicação de excertos de um manuscrito original já publicado na Zéfiro editora:

MEMÓRIAS DE UM PSICANALISTA
José Carlos DIAS CORDEIRO


Deixe-me dizer-lhe o que alguém me confidenciou:

... eu tenho tudo na vida mas falta-me a alegria e a paixão de viver.


que pedras terei de mover no tabuleiro do meu dia-a-dia para conseguir surpreender-me de novo, reconciliar-me comigo, com os outros e viver?


Esta é uma questão que o leitor aprenderá a responder. E fá-lo-á com a ajuda de um jovem fascinado pela vida e de seu avô, um psicanalista interessado em escutar palavras, silêncios, dúvidas que todos temos.

Este livro vive de duas experiências:

  • as memórias de um psicanalista

  • a volúpia, única, de pessoas como você conseguirem resgatar-se do fundo de si mesmas e renascerem para a VIDA.

29 junho 2009

12. Desbastar o corcel alegremente



"Tannhauser" de Richard Wagner

As nossas pulsões agressivas e sexuais, quando são acompanhadas de afecto, geram vida, mas podem desencadear violência quando são marcadas pela inveja. Teremos todos de desbastar o potro selvagem com que nascemos. A força bruta do corcel puro sangue só pode expressar-se alegremente quando alegre é o cavaleiro que o desbasta, o domestica, com a magia redentora do amor. Sublimando, transformando em vida o risco de morte contido nos instintos agressivo e sexual que todos trazemos em nós.

- Vais desculpar-me, avô, mas ao ler a história da pérola e de desbastar o corcel alegremente, voltei a questionar-me se tu és um bom contador de histórias, ou se acreditas mesmo no mundo lindíssimo de que falas.


- Essa é uma questão que não tem uma resposta única nem simples. Posso escrever e falar de uma maneira afectivamente neutra se estiver, por exemplo, a descrever como pego num machado e racho lenha para a nossa lareira ou como pescava sargos e douradinhas quando tinha a tua idade. Apesar de me dar imenso prazer rachar lenha e pescar, é um pouco a vida de todas as pessoas. Dá-me prazer, mas não me sinto empolgado ao fazê-lo. Já n’A Pérola (1945) de John Steinbeck e no Corcel e Cavaleiro, de Antero, sentimo-nos arrebatados pelos insondáveis mistérios da Vida. O que tornou conflituosos os pescadores daquela aldeia, não foi não terem apanhado uma pérola excepcional, mas sim ter sido outro pescador, tão pobre como eles, a consegui-lo. E foi a mimésis de Espinosa (1632-1677), a inveja devoradora de engolir a virtude do irmão pescador, que tirou a paz não apenas a um pobre que se tornou rico mas, também, aos pobres que continuaram pobres naquela pacífica aldeia junto ao mar. O mal, a inveja, não é culpa da pérola. Mas sim, e apenas, de todos continuarem pobres menos um. Esta é uma metáfora de facto lindíssima. Foi acreditando convictamente que valia a pena continuar a mergulhar que aquele pescador, sem dúvida bafejado pela sorte, conseguiu vencer a pobreza. Como também são os homens e as mulheres de todos os tempos que acreditam convictamente valer a pena lutar, que acabarão por merecer a sorte de ganhar. Mesmo que para isso tenham que bater-se contra ventos e marés, contra velho do Restelo. Estarás de acordo que a pobreza não se resolve devolvendo a pérola ao mar, como fez o pescador para pacificar o seu povo. Como também não é invejando quantas pérolas se conseguem honestamente que, alguma vez, a pobreza se transformará em riqueza...

- Quer dizer que o velho do Restelo, de que já ouvi falar na escola, não era patriota?
- Não é bem assim. O velho do Restelo representava o Portugal conservador, enquanto D.João I, o Infante D. Henrique e tantos outros, eram animados pelo rasgo, pelo golpe de asa de um ideal. Repararás que num contexto completamente diferente continuamos a ter conflitos sociais que, muitas vezes, começam por ser o que se chama delitos-de-opinião, grupos que têm opiniões diferentes de outros grupos. Mas que ainda hoje se pervertem, transformando o debate de ideias legítimo e urbano numa desbragada luta pelo poder. Não já ao serviço do país, de ideais, mas de interesses de pessoas e de grupos.


- Já agora, uma pergunta, o que estás a dizer tem a ver com as revoluções que têm acontecido?


- De facto, ao longo dos séculos, tem havido exemplos de ganhadores e de perdedores. Bonitos uns, honestos, feios outros, movidos pela inveja. Recordar-te-ás que a Europa do início do século XX foi palco de uma acesa luta por um ideal, o da justiça para todos, do pão e trabalho para toda a gente. À partida, a causa era nobre porque aspirava a uma sociedade sem classes, sem capatazes nem operários. Já ouviste por certo falar da revolução marxista-leninista protagonizada pelo pensador Karl Marx (1818-1883) e pelo estratego Lenine (1870-1924). Revolução que galvanizou um povo, falando-lhes ao coração do sonho anarquista da sociedade sem classes. Só que, todos quantos não estavam de acordo com a revolução ou a quem não fora dada a mínima oportunidade de compreender e aprender a acreditar, foram dizimados ou obrigados a expatriar-se do solo onde nasceram. É a triste história dos russos brancos à mercê dos russos vermelhos, ganhadores da revolução bolchevique. Foi um período sangrento, de luta fratricida, que devorou muitos milhares de compatriotas. E é assim que brandindo a bandeira da justiça para todos, mas animados da inveja contra todos quantos tinham uma pérola, mesmo que fruto do seu trabalho, que muito sangue foi derramado. A revolução bolchevique, a revolução francesa e todas as outras, perverteram-se rapidamente, minadas pela ambição invejosa do poder. E acabaram por deixar espalhados pelo caminho, igualmente devorados pela inveja, os cadáveres de protagonistas revolucionários, pouco tempo antes adulados como deuses. Como Trotsky, morto por um machado bolchevique, por camaradas seus, também vestidos de vermelho, de um vermelho diferente, enviados ao México, para onde se exilara para ficar sossegado. Na revolução francesa foi, também, o caso de Robespierre.


- Fiquei com o papinho cheio, avô, à espera da nossa próxima

conversa!...


15 junho 2009

9. Paridos pelo pecado original?



"Madame Butterfly" de Puccini (Maria Callas)

Todos nós, e a leitora também, somos fortemente marcados pelos laços culturais, pelo afecto que nos nutre. Tendemos, porém, a continuar assombrados pela herança do pior que o cristianismo nos legou – pecado e penitência, crime e castigo por alegados mostrengos, demónios, deuses retaliadores. Tudo parido pelo pecado original.
Mas não tem alternativa, minha cara leitora, terá que jogar fora as roupagens ensimesmadas que ao longo da vida lhe colaram à pele. E pode crer que para merecer a vida que recebeu, tem de compreender por que se envergonha, ainda, das pepitas de ouro que tem vindo a descobrir em si.

- Confesso, avô, que não sei se percebi bem.

- Repararás que desde que nasceste tens vindo a confrontar-te com a ambivalência de querer e não querer, como os pratos de uma balança que oscilam numa tentativa permanente de conseguir o equilíbrio. O que temos feito aqui é aprender-a-pensar, que estudarás qualquer dia em “Filosofia para crianças”. Diz-me lá: o que é que distingue um acto moral dum acto não moral, ou seja, qual é o critério que define moralidade? Para Emmanuel Kant (1724-1804), por exemplo, o critério de moralidade baseia-se na possibilidade de um acto poder tornar-se universal, isto é, poder ser praticado por toda a gente. Se tu num jardim cheio de flores não resistires à tentação de colher uma flor para levares à tua mãe, pergunto-te, isso é moral ou não moral, o que achas?

- Isso é um pouco complicado, avô, porque se há muitas flores não tem mal apanhar uma única, ainda por cima se ninguém me vir.

- O que tu dizes é só parte da verdade, não a verdade toda.
Mas estás de acordo que para definirmos se é ou não moral, não interessa se há milhares de flores e muito menos se há ou não alguém a observar-te. Um acto ser ou não ser moral depende apenas de ti, de seres capaz de pesar entre dois opostos, tirar ou não uma flor, e decidires tu próprio.

- Ora bem, se eu aceitar a opinião de Kant é claro que não posso tirar uma flor. Porque se toda a gente o fizesse, estaria errado.

- É isso mesmo, toda a vida se decide entre opostos. E fica já a saber que a filosofia9 que se centra no confronto entre opostos, a Dialéctica, começou na Grécia com Platão e Aristóteles e teve o apogeu no filósofo alemão Hegel.

A dialéctica entre tentares fazer tudo para vencer e a tentação de te aninhares na nostalgia e quietude do passado pauta a tua vida como a de todos nós. Sempre que isso acontecer terás o espaço de liberdade de te projectares, desassombradamente, no futuro e ganhares ou, pelo contrário, ficares à espera de Godot ...

Ainda esta manhã acordei a pensar na conversa que tive com o meu neto. É espantoso a quantidade de potencialidades que temos. E só depende de nós escolher a agulhagem do bem, da vida e vivermos ou, pelo contrário, não escolher. Sabendo, porém, como Jean-Paul Sartre (1905-1980) ainda hoje nos ensina, que “não escolher é igualmente uma escolha, a de não escolher”.



8. O Absoluto não existe



"As grutas de Fingal" de Mendelssohn


Já deve ter reparado, caro leitor, que a sua vida ganha sentido ao complementar-se, prolongar-se nos outros, os amigos e mesmo desconhecidos com quem se cruza no dia-a-dia. Já Heráclito de Éfeso nos ensinara que uma pessoa não é a mesma em dois momentos diferentes, apesar de continuar a ter o mesmo nome. Isto porque são sempre diferentes as águas de um rio que banham as margens, como também a vida que corre em nós em cada momento que passa.
Sabe que não é matéria inerte, insensível. Está povoado por memórias emocionais e cognitivas, e tem passado, presente, futuro.

Ao ler estas folhas, o leitor convive com o seu espaço interior, revisita-se e restaura a imagem de si próprio e das pessoas que o habitam. Está também a purgar as contradições, exorcizar os demónios que o consomem. E, progressivamente, abdica de ajustar contas com quem quer que seja e com a vida ao relativizar os desejos à sua escala e condição humana, em vez de perseguir o Absoluto. O Absoluto é uma abstracção, não existe. Quando muito é um lugar que ainda não existe, uma utopia.

Todos transportamos contradições entre o que pensamos e o que sentimos, entre as ideias e o afecto subjacente. E a única solução é reconciliarmo-nos connosco, com os outros, com a vida.


6. Imaginário dos Povos



"Adagio para cordas" de Samuel Barber

A comunicação entre duas pessoas é feita de afectos, memórias, fantasias, que não se reduzem, não se esgotam em palavras. É uma comunicação em vasos comunicantes entre os nossos conscientes e inconscientes, em palavras, mas também silêncios, ritmos, ao sabor das ondas. Numa partilha de contradições que emergem no sentir e no pensar do imaginário individual e dos povos.


- Posso dizer-te um segredo, avô?


- Claro, a nossa relação é muito bonita. Partilhamos um com o outro tudo o que nos apetece. O que eu quero dizer-te é que a primeira coisa que penso, logo que acordo, é imaginar o que vamos contar um ao outro.


- Estou sempre deserto de te ouvir contar histórias.


- São histórias de pessoas, como nós, que eu te conto...





08 junho 2009

5. Tempo de cerejas



"Prelúde à l`aprés midi d`un faune" de Debussy


Proust fala de Em busca do tempo perdido. Mas aqui, prezada leitora, é mais do que isso. É a busca do tempo que passou, do tempo que está para vir. É a disponibilidade para deixar a vida acontecer. Busca do tempo vivido, da essência de si mesma a partir do seu existir no passado, no presente, no futuro.

À medida que encontrar o seu ritmo e o seu espaço, tudo será mais fácil. Como no Temps des Cerises (Yves Montand). As cerejas serão tudo o que conquistar, merecer, partilhar com os outros. É isso que tem vindo a fazer, deixar-se surpreender por si própria...

4. Escutar o Silêncio



"Adaggieto, 5ª sinfonia" de Mahler


É a sua disponibilidade e desejo de ser entendido que põem em marcha a nossa comunicação. Como acontece com o bebé que jamais falará se não falarem com ele, jamais amará se não se sentir bem amado.

A comunicação de um recém-nascido com os seus pais começa por ser a sua presença, desperto ou a dormir, as batidas do seu coração, o seu respirar. Essa é a comunicação possível do recém-nascido. E é o amor dos pais que os leva a acreditar na ilusão que o bebé já os reconhece quando esboça um sorriso e um olhar de satisfação após a mamada.

Aqui caro leitor vem em busca de si próprio, do seu tempo, do seu Ser.

-Não me diga avô que eu senti tantas coisas ainda na barriga da mãe?!

-Já desde o útero sentias isso tudo...
Essa é justamente uma das mais surpreendentes maravilhas da vida.

-Se não fosse o avô a dizer-me isso, palavra que eu não acreditava.

-Mas é pura verdade e podes perceber agora melhor que há um entendimento precioso, pela voz e cheiro da mãe, o seu andar, o seu silêncio, que desabrocham muito, mas muito antes das palavras.

01 junho 2009

3. Habla con Ella



"Bachiana nº5" de Hector Villasboas



É curioso, caro leitor, recordar a propósito o filme Habla con ella, em Português Fala com ela, do realizador Pedro Almodóvar:

Duas jovens mulheres dão entrada em coma numa clínica. Uma, bailarina, após grave atropelamento, a outra, toureira afamada, colhida numa faena. Qualquer delas recebe diariamente a presença atenta de um homem, uma, seu noivo, a outra, seu enfermeiro. O noivo olha-a, calado, distante, só. O enfermeiro conta-lhe histórias do que lhe acontecera naquele dia, como está o tempo, a vida lá fora, partilha com ela o calor das suas mãos ao penteá-la, secá-la, massajá-la. Por um segundo que fosse, o primeiro jamais acreditou que sua noiva o ouvisse, ao contrário do enfermeiro, que sempre se sentiu escutado. Longos foram os períodos em coma, longos os silêncios e ausência afectiva do noivo que acabou por conformar-se com a partida de sua noiva. Enquanto a outra mulher começou lentamente a responder ao calor da voz humana e das mãos, deixando-se engravidar pela vida. Afirmar que uma delas teria morrido pela ausência de comunicação e que a outra recuperara porque jamais o seu interlocutor duvidara que ela o escutava, arrisca-se no mínimo a ser considerada uma afirmação não científica. Mas vale a pena perguntar: quem somos nós, humanos, para duvidarmos dos insondáveis mistérios e poderes do afecto e da vida?

E a prova é que as pessoas em coma recordam, ao despertar, o calor da presença, da voz, das mãos, dos beijos de quantos sempre acreditaram que elas regressariam... E muitas delas regressaram.