Bem-vindos


a este vosso novo Blog, tratem-no bem ou mal conforme merecer, mas por favor reajam, participem. Iniciá-lo-emos com a publicação de excertos de um manuscrito original já publicado na Zéfiro editora:

MEMÓRIAS DE UM PSICANALISTA
José Carlos DIAS CORDEIRO


Deixe-me dizer-lhe o que alguém me confidenciou:

... eu tenho tudo na vida mas falta-me a alegria e a paixão de viver.


que pedras terei de mover no tabuleiro do meu dia-a-dia para conseguir surpreender-me de novo, reconciliar-me comigo, com os outros e viver?


Esta é uma questão que o leitor aprenderá a responder. E fá-lo-á com a ajuda de um jovem fascinado pela vida e de seu avô, um psicanalista interessado em escutar palavras, silêncios, dúvidas que todos temos.

Este livro vive de duas experiências:

  • as memórias de um psicanalista

  • a volúpia, única, de pessoas como você conseguirem resgatar-se do fundo de si mesmas e renascerem para a VIDA.

28 maio 2009

2. Ver-se ao Espelho



"A Truta" de Franz Shubert

- Responder-te claramente e em poucas palavras o que é ser analista não é fácil. Basicamente o que o analista faz é dar às pessoas oportunidade de ver-se ao espelho, é ser o eco do pensamento e o espelho de quem o procura. A melhor maneira de o analista responder é ajudar as pessoas a abrir janelas sobre o universo interior e exterior do seu dia-a-dia.


- Só não percebo, avô, como é que uma pessoa pode sentir-se ajudada vendo-se reflectida em ti e ouvindo o eco dos seus pensamentos .

- É que o silêncio não é um vazio, está meublé, mobilado de memórias, de pessoas significativas que te habitam.

A relação entre as pessoas não é, apenas, uma comunicação em palavras, é o desejo de partilhar.

08 maio 2009

1. Diz-me, avô




Quando, naquela manhã, o meu neto veio, como de costume, tomar o pequeno-almoço, apercebi-me imediatamente que muitas coisas estavam a acontecer naquela cabeça revolta. Era como se, de repente, tudo se tivesse modificado entre nós. E já não bastassem as conversas habituais sobre como passámos a noite e o que iríamos fazer nesse dia. Ele estava muito tranquilo, olhando-me longamente, sem dizer palavra. Como se quisesse partilhar comigo o prazer de estarmos juntos, deixando, simplesmente, a vida acontecer.

Eu estava já habituado à imensa curiosidade dele, sobretudo quando observava a natureza, as pessoas, as plantas e os animais e quando me questionava sobre como surgiram homens, animais, raças, quem criou tudo, um Deus, vários deuses, uma Ordem Universal. Os mais pequenos pormenores da vida vegetal, animal e humana, que ele começara já a aprender na escola, revelavam-lhe uma natureza com tal perfeição e harmonia que lhe era difícil aceitar que tudo teria acontecido por acaso. Todas estas questões fervilhavam-lhe na cabeça e se, por um lado, não conseguia perceber que a vida tivesse vindo do nada, também não entendia por que existem tantas crianças com fome, abandonadas, doentes, vítimas inocentes de guerras que não são suas.

Era comigo que ele queria conversar sobre tudo isto. Mas, muito antes de o fazer, queria saber uma quantidade de coisas sobre o avô, o meu passado, presente, futuro, aquilo em que acredito e acreditei e, sobretudo, como tenho conseguido manter um ar tranquilo, de quem não tem pressa, que está para além dos ponteiros do relógio.

Entre duas dentadas num scone que lhe fizera naquela manhã, encheu-se de coragem e, repousando os olhos no meu olhar transparente, segredou-me: “diz-me, avô, o que é ser psicanalista?”…
Eu esperaria tudo dele menos que se interessasse pela minha vida, mas percebi que, muito mais do que sobre o meu trabalho, ele e as pessoas que me procuram o que verdadeiramente querem saber é como aprender a tomar conta delas e a viver.