Bem-vindos


a este vosso novo Blog, tratem-no bem ou mal conforme merecer, mas por favor reajam, participem. Iniciá-lo-emos com a publicação de excertos de um manuscrito original já publicado na Zéfiro editora:

MEMÓRIAS DE UM PSICANALISTA
José Carlos DIAS CORDEIRO


Deixe-me dizer-lhe o que alguém me confidenciou:

... eu tenho tudo na vida mas falta-me a alegria e a paixão de viver.


que pedras terei de mover no tabuleiro do meu dia-a-dia para conseguir surpreender-me de novo, reconciliar-me comigo, com os outros e viver?


Esta é uma questão que o leitor aprenderá a responder. E fá-lo-á com a ajuda de um jovem fascinado pela vida e de seu avô, um psicanalista interessado em escutar palavras, silêncios, dúvidas que todos temos.

Este livro vive de duas experiências:

  • as memórias de um psicanalista

  • a volúpia, única, de pessoas como você conseguirem resgatar-se do fundo de si mesmas e renascerem para a VIDA.

30 julho 2009

25. A violencia gera violência


"Walkiria" de Richard Wagner

Grande parte da violência individual e colectiva tem a ver com a máxima da sabedoria popular: “a violência gera violência como, a tolerância, tolerância e o amor, amor.” Recordar-se-á que para o renascentista Espinosa, a violência tem a sua origem na mimésis, isto é, na inveja devoradora de todos quantos não conseguimos imitar. Se não conseguirmos sublimar e conter a inveja pelos sucessos conseguidos pelos outros, arriscamo-nos a perder o controlo da agressividade e tornarmo-nos violentos.

As crises de Valores comprometem a capacidade de as matrizes naturais familiar, social, cultural conterem a agressividade e a violência. Sabe bem, leitor, que a autoridade sem autoritarismo é, nas sociedades humanas como nas animais, o garante da resolução da conflitualidade potencial contida na dinâmica de todos os grupos. Mas é o afecto que determina a capacidade de preservar o seu ser, melhorando o discernimento da inteligência e a capacidade de agir.


- Não percebo bem, avô, quando falas de conflitos entre raças e ricos e pobres.


- Há séculos que existem diferenças. Se te contar o que me aconteceu uma vez em África perceberás melhor. Estava eu com um grupo de jovens africanos, rapazes e raparigas de raça negra, justamente a conversar sobre conflitos entre grupos, e um dos africanos saiu-se com esta: quando está um grupo de brancos e entra um preto, os brancos naturalmente dizem ou pensam, “lá vem um preto!”. E o que é curioso é que se estiver um grupo de pretos e entrar um branco, também pensam naturalmente, “lá vem um branco!”.

Como vês, em ambas as situações é a mesma verdade: é uma pessoa diferente que aparece naturalmente. Mas isto que é natural transforma-se num acto racista se, por exemplo, os brancos atirarem para cima do preto recém-chegado as suas frustrações e complexos, ou o contrário.

Aí passa a ser: “que maçada, lá vem um preto!”


- Então porque é que uma coisa natural como a cor da pele pode provocar um conflito racial, só por causa dos complexos?


- Parece um exagero, mas é isso que acontece. É que todos, brancos ou pretos, temos dias bons e dias maus, temos orgulho no que fazemos e, por vezes, vergonha do que pensamos, e tu sabes que a vida pode ser madrasta para muita gente. E é a vergonha de, por exemplo, nos sentirmos ridículos, magrinhos ou gordinhos, que nos incomoda.

Como também ser injustiçado sem razão, abandonado, rejeitado. Jogar fora, atirar para cima dos outros esse mau estar, é uma maneira rápida de tentar esquecer, sem sofrer.


- Agora já vou percebendo porque é que há tanta violência e tantos conflitos.


27 julho 2009

24. Renascer



"4ª Sinfonia IV" de Mahler (Sehr Behagich)


O leitor está aqui numa gestação psíquica, em busca de si. No termo dela poderá parir-se, renascer, simples como isto.


Tem uma vida à sua frente, pode abandonar-se confiantemente e aceitar viver. É um trabalho com rede, sem riscos. Estamos envolvidos por uma pele psicológica (Esther Bick), que nos permite soltarmo-nos sem perigo. Repare onde veio meter-se, é uma viagem fascinante ao fundo de si mesmo. Pode galopar a vida, desassombradamente, libertar-se das crendices da infância dos povos e da sua própria. Provar que os mostrengos são apenas fruto do desconhecido, das brumas onde medram todas as crendices e superstições.


Pode descomprimir, mas não está num confessionário, aqui não há penitência, nem punições. O que existe é um espelho e terá que decidir se gosta, ou não, da imagem que vê reflectida.

23 julho 2009

23. Há Mar e Mar, há Ir e Voltar...



"Suite medieval IV" de Frederico de Freitas

O leitor tem aqui oportunidade de revisitar as suas memórias emocionais. Conviver e gerir o seu espaço, tempo, a luz que o ilumina e conforta por dentro, lhe restaura as recordações.


Muito mais importante do que ler livros de psicologia é deixar-se viajar pelo mundo interior, aceitando a vida acontecer, descobrindo-se. Desde que me telefonou entrou numa gestação de si. Libertando-se de máscaras, fantasias de carnaval, roupagens que deixou colarem-lhe à pele, artefactos que pouco têm a ver com a sua verdadeira natureza. Como na Metamorfose do Kafka, Gregor, a certa altura, toma consciência de que se transformou, sem dar por isso, num subproduto de si próprio, um desprezível insecto. Sente-se horrivelmente desconfortável. Cai sobre o dorso, não consegue voltar-se, desesperadamente impotente. Face a esta caricatura de si, incapaz de se reencontrar, tolhido nos movimentos, pensamentos, sensibilidade, sem esperança nem futuro, a solução para Gregor é gritar: “não aceito no que me transformei, no que a vida me transformou, um homem de fato cinzento, um subproduto de mim.” A única forma de ele afirmar a sua independência é recusar a sociedade baça, cinzenta, sem rasgo nem frescura, recusar a palha que tem vindo a comer à mão de quem lhe paga.


Aqui, caro leitor, pode ver-se ao espelho, confrontar-se consigo e dizer se gosta ou não da sua imagem reflectida. Se não gosta, tem aqui um espaço e um tempo privilegiados para mover as pedras no tabuleiro da sua vida. Basta mover uma pequena pedra do sistema, para que todas as outras tenham que se adaptar ao movimento. Este gesto simples cria dinâmica, interacção com o mundo que o rodeia, em busca de um novo equilíbrio.

20 julho 2009

21. Que mal fiz eu a Deus



"Op.57 Berceuse" de Choupin

Quantas vezes o medo que sentimos não passa de um receio imaginado, e não propriamente um acontecimento que nos traumatizou! Também, quando uma criança é castigada, e não percebe a razão por que o foi, vai, naturalmente, pensar “que partida terei eu feito aos meus pais?” A obsessão de nos redimirmos de pecados impregnada na nossa cultura judaico-cristã leva-nos facilmente a sentir “que mal terei feito eu” popularizado na expressão “que mal fiz eu a Deus?”... É curioso o leitor estar hoje a dizer-me:

Gostava de pôr a render o capital de experiência
que tenho em mim. Mas sinto que se o fizer,
fico um menino crescido, capaz de andar sozinho, pensar.
Fico cheio de medo de perder este útero protector que tenho aqui.

Quando o leitor deixar de necessitar conversar comigo, isso quererá dizer que interiorizou a nossa relação com tudo de bom que tem acontecido. Que saberá conviver com o seu espaço interior, e partilhá-lo. Terá adquirido a capacidade de lidar com os seus afetos, no dia-a-dia. Não se sentirá já sozinho, pode ir-se embora, completo, não fica abandonado, isto é, nem me abandona, nem eu o abandono, separa-se em plenitude total. Porque no seu universo, todo este espaço e este tempo continuará a pertencer-lhe.

16 julho 2009

21. Em busca do tempo perdido




"Peer Gynt" de Edvard Grie (barbara Bonney)

Ao revisitar as suas memórias recordando o bater das ondas do mar nas rochas, na casa da sua infância, está a conviver com o seu passado, cara leitora. Em busca do tempo perdido é a memória de um tempo que passou mas que dá todo o sentido à continuidade histórica do seu percurso. Mesmo que esbatidas, nunca perdemos a memória emocional de experiências passadas.


Não é bom viver no passado, mas estará de acordo que é essencial vivermos, também, do passado. Sem passado, sem memória, é como se não existíssemos. O que acontece é que o passado é feito de alegrias e tristezas, esperança e desalento. Nietzsche ensina-nos que, por mais doloroso que seja, não esquecemos o passado.


É confrontando-se com as suas memórias, re-situando-as nas circunstâncias e no tempo em que aconteceram, que poderá digerir o pão que o diabo amassou. Confrontando-se com as recordações, não renega o passado, mas pode, mesmo que lentamente, redimensioná-lo, distanciando-se e esvaziando as feridas do seu sofrimento. E, sobretudo, poderá perceber que, nas relações afectivas, não há vencedores nem vencidos, não há espólio a saquear, nem troféus a exibir. Tudo foi, é e será sempre, a mais sublime magia do melhor que temos em nós. Só assim poderá aprender com a experiência a libertar o amor que a move e os demónios que a perseguem.

13 julho 2009

20. Subproduto de si


"Sinfonia 1, 3º Mov., Marcha funebre", de Mahler


Recorda-se que, no início, não sabia por que me procurava, apesar de se sentir muito desconfortável na sua pele. Já vai sendo capaz de utilizar as defesas inscritas em toda a matéria viva, de evitar e proteger-se de ambientes hostis. Qualquer animal se protege das enxurradas, do frio ou do calor excessivo, como também se defende dos micróbios. Na sua vida está igualmente munido de capacidades adaptativas que lhe permitem lidar com a realidade, seja ela interior, como a ansiedade, ou exterior, como a exclusão social, a perda de alguém.

Sendo assim, que conversa é essa que o dia hoje correu mal?

Tem-se por algum super-homem, indiferente ao que se passa à sua volta? A partir do que não gosta pode encontrar as vias possíveis do que gosta. O que necessita é mover pedras no tabuleiro da sua vida, como vimos. Saber quais as que tem que mover para sair desse sufoco.

Quando diz que se sente mal, massacrado, é verdade que tem sido muito machucado, mas também por si próprio. Não quer dizer que seja um masoquista que gosta de flagelar-se.

09 julho 2009

18. ...Para que tudo continue na mesma



"Gymnopedie" de Erik Satie

“É preciso que alguma coisa mude para que tudo continue na mesma”, afirma Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957), em O Leopardo (1959), referindo-se aos movimentos reformistas contra a aristocracia do poder instaurado na Itália dos anos 60 do século XIX.
Trata-se de uma visão cínica exactamente contrária ao que se passa aqui. Mesmo quando o leitor, por vezes, se sente perdido, a ponto de não conseguir unir as pontas, pode, no mínimo, recorrer a uma imagem do mundo físico e perguntar-se: “Quais são as pedras que tenho que mover no tabuleiro da minha vida para recomeçar a ver a luz ao fundo do túnel?”

- Essa do Lampedusa, é mesmo desarmante, avô.

- O que ele queria dizer é que não há nada melhor do que fazer de conta que estamos de acordo para que nada mude e tudo continue na mesma.

- Isso tem alguma coisa a ver com a iliteracia18 de que se fala tanto hoje em dia?

- Pode comparar-se porque os iletrados lêem e ouvem as palavras correctamente mas não percebem o sentido da frase. O que Lampedusa pretendia era esvaziar e desactivar a insatisfação social dos movimentos populares, fazendo-lhes crer que estava de acordo em encontrar uma solução para os trabalhadores. O iletrado não é um analfabeto, mas é uma pessoa que quando lê um jornal, um livro ou um ponto de exame, lê as palavras mas não consegue perceber nada.

- Mas a iliteracia é uma doença ou não?

- Aí está uma boa questão. Se eu fosse o Lampedusa e quisesse evitar falar do problema de fundo, dir-te-ia que sim, que a iliteracia, é uma espécie de dislexia, na qual as pessoas trocam, por exemplo, o p pelo b. Deixaria as pessoas sossegadas por acreditarem nessa doença imaginária, não precisando de tentar ir ao fundo do problema. É que, como dizia um português suave19, “o povo é sereno”20, deixem-no sossegado.

- É de propósito ou estás a baralhar-me ainda mais, afinal é uma doença ou não?

- Depende, se fizermos como o Giuseppe di Lampedusa, que iludia a verdadeira solução dos problemas, podemos dizer que sim. Caso chames doença à miséria humana material e moral, ao obscurantismo, à exclusão social, então iliteracia é uma doença diferente, uma doença social.

Sabe que tudo na vida é interactivo e a pior atitude é o imobilismo, é não tentar. Quando um animal, por exemplo, o caracol, se sente ameaçado, imobiliza-se na sua casca, faz-se de morto. Animais mais diferenciados, como nós, avaliam rapidamente as suas possibilidades de vencer e, ou resolvem os problemas do dia-a-dia, ou evitam-nos e evoluem, adaptando-se.
É por isso que a imagem das pedras no tabuleiro da vida pode ajudar-nos a decidir qual ou quais as pedras, quais as atitudes ou comportamentos, que teremos de mudar para relançar em nós o movimento ganhador.

06 julho 2009

15. Empurrar a esfera sagrada da vida


"Sonata nº8, Pathetique 2º Mov., de Beethovan

Desde que nasceu aprendeu a levantar-se, caminhar. Nunca cessou de escalar a montanha da vida, empurrando com as mãos, como Sísifo, a esfera sagrada da sua existência. Está prometida a existir em liberdade, a dar vida à energia programada nos seus genes. Existência ímpar e só sua, escrita dia-a-dia na volúpia da sua liberdade. Cumprindo laboriosamente, em paz e harmonia, a essência do seu ser. E, de cada vez que a sua existência lhe escape das mãos e role até ao sopé da montanha, recomeçar, infatigavelmente, a empurrá-la para cima. E fá-lo-á tantas vezes quantas for preciso. E, até ao último dos seus dias, nada, mas absolutamente nada, estará definitivamente escrito. Tem o espaço de liberdade de se reconciliar, ou não, consigo, com os outros, com a vida. Juntando-se a todos quantos pelo seu amor vão dando mais, cada vez mais sentido aos seus dias. Mas não é só no sonho que os insondáveis desígnios e mistérios de cada ser se escrevem, dia-a-dia. É também, e sobretudo, no chão que seus pés pisam. Em dias de sol ou tempestade...

02 julho 2009

13. Utopias ?





Quando ouvir alguém dizer: “Deus me livre dos meus amigos porque com os meus inimigos posso eu bem”, não significa que deva estar sempre desconfiado com as pessoas. É consigo próprio que deverá estar atento quando se sentir, por exemplo, um homem de fato cinzento, um camaleão para todos os gostos, um português suave. Contente consigo e com a sua tribo, o seu clube, a sua camisola. Cego, surdo e mudo à palha que as pessoas consomem, ao deserto afectivo em que se movem, à vida sem esperança, sem dia seguinte (sans lendemain). É tendo uma expectativa positiva dos outros, acreditando teimosamente, como Jodie Foster acreditou, no seu filme Contacto (1997), que pessoas de desconhecidos e longínquos planetas tentam comunicar connosco, que poderá, não digo mudar o mundo, mas acreditar que é possível melhorá-lo. A etimologia da palavra utopia vai no mesmo sentido: há locais, estádios, que não existem, ainda, mas o facto é que todos os grandes avanços da humanidade começaram por ser utopias...

- Acho piada, avô, falares-me do filme da Jodie Foster, Contacto, que vimos juntos. É espantoso como ela não desanimou e continuou a acreditar que vale a pena escutar pessoas que querem comunicar connosco. Achei um filme lindo, mas para falar com franqueza, avô, não sei se eu seria capaz de esperar tanto tempo como ela.

- Repara que é a mesma questão que se colocava na atitude face a pessoas em coma, que já tínhamos visto também em Habla con ella, e a atitude face a recém-nascidos.
Acreditar convictamente que os recém-nascidos e as pessoas em coma sentem a presença, o calor, o afecto, a voz, as carícias de familiares queridos, não é apenas acreditar no espaço de ilusão em sentido estrito, é muito mais do que isso. É acreditar no que Arquimedes incessantemente continua a ensinar-nos: “Dêem-me um ponto de apoio e eu levantarei o Mundo.” É o amor, a esperança, o ponto de apoio de que precisamos.

- Tu sabes, avô, como eu gosto de te ouvir falar assim, faz-me acreditar que existe um Mundo bonito em que as pessoas esperam dos outros o melhor deles, a ponto de os recém-nascidos nascerem para a vida e as pessoas em coma regressarem a ela. Mas por favor, diz-me: tu acreditas mesmo que o amor pode fazer esses milagres? Ou é apenas o teu desejo?


- Apetece-me responder com o diálogo entre homens e deuses: estavam os homens apostrofando os deuses “deuses impassíveis, por que nos criastes?!” e os deuses, com voz ainda mais triste, respondem: “homens, por que nos criastes?...” O que me parece interessante no místico sem deus, vítima do seu sonho, que continua a ser Antero de Quental, é os deuses responderem, de facto, aos anseios dos homens, mas para lhes recordar que o ponto de apoio para levantar o Mundo está dentro deles, é o amor e a esperança. Isto não é tomar os desejos dos homens pela realidade, mas todos quantos diariamente acompanham recém-nascidos e pessoas em coma sabem que só com amor se sobrevive e vive.