Bem-vindos


a este vosso novo Blog, tratem-no bem ou mal conforme merecer, mas por favor reajam, participem. Iniciá-lo-emos com a publicação de excertos de um manuscrito original já publicado na Zéfiro editora:

MEMÓRIAS DE UM PSICANALISTA
José Carlos DIAS CORDEIRO


Deixe-me dizer-lhe o que alguém me confidenciou:

... eu tenho tudo na vida mas falta-me a alegria e a paixão de viver.


que pedras terei de mover no tabuleiro do meu dia-a-dia para conseguir surpreender-me de novo, reconciliar-me comigo, com os outros e viver?


Esta é uma questão que o leitor aprenderá a responder. E fá-lo-á com a ajuda de um jovem fascinado pela vida e de seu avô, um psicanalista interessado em escutar palavras, silêncios, dúvidas que todos temos.

Este livro vive de duas experiências:

  • as memórias de um psicanalista

  • a volúpia, única, de pessoas como você conseguirem resgatar-se do fundo de si mesmas e renascerem para a VIDA.

24 setembro 2009

MORTE/AMOR



"Coro dos Escravos hebreus", Ópera de Nabuco de Verdi

Diz o corcel: Eu Sou a Morte

Responde-lhe o cavaleiro: Eu Sou o Amor

(Antero de Quental)



Morte / Amor, duas metades da pessoa que todos somos.


Tereis de desbastar, caro leitor, o potro selvagem com que nascestes.


Sublimando, transformando em vida o risco potencial de morte dos instintos agressivo e sexual que todos trazemos em nós.

46. Magia do espaço de ilusão mãe-bebé-pai



"Adeste Fidelis", Autor do Rei D. João IV de Portugal (Il Divo)

- ...já devorei as folhas que me deixaste, avô, e não sei se percebi tudo.


- Se percebeste ou não o que quis dizer não é o essencial. O importante são as ideias, as dúvidas, tudo o que te vem à cabeça a partir do que suscita em ti o que eu disse ou não disse. Tudo o que cresce em ti ao ler-me, por que essa é a vibração criativa da tua sensibilidade e da tua inteligência.


- Isso é tudo muito bonito mas estarás de acordo, avô, que é um pouco confuso...


- O recém-nascido contém toda uma série de potencialidades e competências por desenvolver, jamais falará se não falarmos com ela, apesar de ter no seu código genético, potencialmente, a capacidade de amar e de falar. Tu próprio, já não te lembras, mas foi assim que nasceste para a vida.


- Só não percebo muito bem por que sou tão diferente do João e da Rita. Apesar de termos os três os mesmos pais e avós.


- Deixa-me dar-te um exemplo que tu conheces. Sempre gostaste muito da música de Natal Adeste Fidelis, que tu conheces bem, do nosso rei D. João IV. Aqui está um bom exemplo de um programa que está escrito na partitura, com as notas todas marcadas, mas de cada vez que tu a ouves é um Adeste Fidelis diferente, por que diferente é a sonoridade e a sensibilidade sempre que novos músicos lhe dão vida.

Uma partitura musical pode ser muito bela, como a voz do soprano e a sua capacidade técnica também, mas a alquimia dos sons sublimes só será consumada, como no amor, pelo desejo das pessoas. É o afecto que dá sentido a tudo.

E agora já podes contar a história do Adeste Fidelis aos teus amigos.

21 setembro 2009

45. Vendedores de sonhos...



Sinfonia nº 6, Pastoral 5º Mov., de Beethovan

Nunca me ouviste dizer que era fácil viajar ao fundo de ti próprio. Tens vindo a fazer-te à vida, mas não precisas de sextante para navegar, necessitas apenas de um espelho, veres-te reflectido para poderes dizer “Sei que não vou por aí!”.


Já vais aprendendo que é do acumular de nutrientes do corpo e da alma, como o Bem e o Belo, que as pessoas encontram o sentido da vida. O teu dia-a-dia, não é convencer ninguém, é dar um testemunho, é ser e estar bem contigo e com os outros. É pela comunicação em vasos comunicantes que podes, cada vez mais, partilhar o sentido da tua vida. E sabes bem que muita gente, e eu próprio, tem já beneficiado da paz que tem vindo a encontrar em ti.


- Como eu tenho encontrado em vocês...

17 setembro 2009

44. Caça às bruxas



"Concerto nº4 , Branderberg" de Bach

O cinema deu-nos exemplos de Cavaleiros da Liberdade. É o caso do Testa de Ferro, de Martin Ritt, protagonizado por Woody Allen e, sobretudo, de Spartacus, produzido e interpretado por Kirk Douglas. Como te lembrarás Spartacus é um gladiador vencedor que teve a seus pés, à sua mercê, outro homem, tão escravo como ele. Em vez de o trespassar, Spartacus volta-se para a tribuna e joga a lança contra o imperador, o verdadeiro inimigo de todos os escravos.


Já agora deixa-me partilhar contigo uma associação livre sobre a verticalidade dos homens, ou a ausência dela. O autor do guião do filme Spartacus, Dalton Trumbo, fazia parte da lista negra de Joseph McCarthy. Kirk Douglas, pergunta, hesitante, a Stanley Kubrik, realizador, como resolver aquele problema. É “simples” responde-lhe Kubrick sem hesitar, “assino eu o guião”. Aqui estão dois homens de estatura moral completamente diferente:


Stanley Kubrik que se oferece sem pestanejar para assinar o guião em substituição do verdadeiro guionista e Kirk Douglas, esse homem de três metros de altura, que não hesitou em inscrever na ficha técnica do filme o nome do verdadeiro autor do guião e com isso desafiar desassombradamente o fanático e acéfalo establishment macartista (século XX, América do Norte). Dando assim razão ao poeta:



...há sempre alguém que resiste

há sempre alguém que diz não

(Manuel Alegre)

14 setembro 2009

43. Dilacerante ambivalência


"Bohéme 03" de Pucinni

Recorda-se que, apesar da imensa alegria de ver os bebés fora de si, se sentiu mais vazia por dentro. Foram para si, como para todas as mulheres, momentos de grande contradição: confrontar-se com a dilacerante ambivalência entre o desejo de cumprir a sua missão de mãe separando-se de suas filhas e o desejo regressivo de mantê-las fundidas em si.

Dizer-me que não consegue falar, é como se receasse soltar-se. O que acontece é que tem estado formatada, pela educação, os hábitos, e tem dificuldade em soltar a criatividade. O pensamento é uma trave estruturante, mas não é a força motriz da vida. É no afecto, na auto-estima que pode reencontrar o desejo de viver em paz, consigo e com os outros. Planando acima da turbulência e das nuvens, como quando esquia ao sol.

Recorda-se que, quando lhe perguntava se merecia ter uma vida boa, dizia-me sempre que não mas hoje já vai respondendo, sorridente, que merece.

10 setembro 2009

42. Uma história de encantar



"Sinfonia Espanhola" de Edouard Lalo

Era uma vez um homem que vivia completamente desencantado e dizia para um amigo “não me apetece fazer nada, absolutamente nada, estou acabado!”. O amigo, repousando longamente nele o seu olhar, disse-lhe para mover uma das pedras de um montículo que estava no chão ao mesmo tempo que lhe tocava no ombro com a varinha mágica do afecto.

Bastou aquele homem sentir o afecto e a confiança nele depositada para ser capaz de mover pedras na sua vida.

Recorda-se, caro leitor, de o físico grego Arquimedes (Século II a.C.) ter um dia afirmado “ dêem-me um ponto de apoio e eu levantarei o Mundo”. O ponto de apoio para si e para todos nós é o afecto, que move tudo na vida. É a quente, no calor do afecto, que o impossível se dissipa.

07 setembro 2009

40. Medram nas Brumas



"Nocturno" de Choupin

A leitora está a sofrer de um stress pós-traumático desde o falecimento de seu irmão num acidente. Ainda hoje não se conforma com o seu desaparecimento inesperado. Será provavelmente por isso que tem actualmente tanta dificuldade em separar-se da sua única filha.

Sentir que tudo teria acontecido por não ter protegido o seu
mais novo e único irmão, é compreensível. Mas pode levá-la a penitenciar-se, desmedidamente, pelos fantasmas que medram nas brumas dos dias cinzentos, que todos temos. Por que motivo há-de carregar aos ombros os pecados da Humanidade?...

Isso não resolve nada. O que pode fazer é varrer tudo quanto é
supérfluo, negativo. Mas atenção, varrer para debaixo do tapete é manter dentro de si tudo quanto tem que deitar fora. Parece teoria, mas não é. Estamos a falar da necessidade de separar o trigo do joio, jogar fora o que não presta e mover, no tabuleiro da sua vida, as pedras ganhadoras.

O percurso que já palmilhou tem-lhe ensinado que a primeira
prioridade é o amor, a tolerância. Mas será que acarinha suficientemente a partilha com os seus familiares e amigos? Pense nisso.

03 setembro 2009

39. Believing e belonging



"Concerto n1 para violino" de Max Bruch (Gil Shaham)

- De todo, avô. E se eu não perceber bem tu explicas-me, ou não?

- Claro. Então ficas a saber que para o Criacionismo, tudo – o Mundo, as pessoas, a Natureza – terá resultado de um acto do Criador, num dado momento, um deus, Ele próprio o alfa e o ómega, isto é, o princípio e o fim de tudo.

Pelo contrário, para o Evolucionismo desde Darwin tudo
resultaria de uma evolução das espécies e da selecção natural, desde as formas mais elementares de vida. A base da vida resultaria do agrupamento de partículas, átomos, moléculas, em células e tecidos. Isto num processo de evolução da matéria orgânica, com multiplicação das células, dos tecidos, dos organismos e com evolução qualitativa,
desde a célula indiferenciada às mais diferenciadas, como por exemplo, as células nervosas.

O Evolucionismo baseia-se na evolução biológica de matéria orgânica a partir do jogo recíproco, interacção ou feedback (retro-alimentação) entre matéria viva, como as células, os tecidos e o meio físico, químico e inorgânico circundante.

É natural que estes debates entre os Criacionistas e os
Evolucionistas sejam difíceis de compreender. Chegou-se mesmo a proibir o ensino do Criacionismo em Ciência nalgumas universidades, como por exemplo nos Estados Unidos, já que o Criacionismo apela para a metafísica, a qual por definição está para além da capacidade de compreensão humana, enquanto que o Evolucionismo nega a Metafísica em Ciência e reclama-se defensor apenas do método científico acessível à compreensão da inteligência.
Ora, o Criacionismo e o Evolucionismo correspondem a concepções que não podem comparar-se por serem de natureza diferente: a primeira, metafísica, baseada na fé, a segunda, científica, baseada no raciocínio. E para solucionar esta questão, têm surgido tentativas de conciliação entre as duas, como é o caso do Evolucionismo-teísta, um Evolucionismo que contém e aceita Deus. E é a altura de voltarmos aos leitores.

31 agosto 2009

38. Mesmo em silêncio


"Concerto n 21, 3º Mov. para piano" de Mozart

- É curioso as associações livres que continuam a ocorrer-me quando falamos. O que é que consideras que é ser um bom professor, um bom pai? Achas que é transmitir bem os conhecimentos?

- Acho que sim, avô, mas também é verdade que há professores muito maçadores.

- E por que é que isso acontecerá? Não será falta de prazer em aprender e ensinar?

- Claro, sem interesse e prazer não se aprende nada.

- Exactamente. Sem prazer na relação entre educadores e jovens não existe comunicação. É a chama do prazer que aquece e ilumina a curiosidade. Foi também a brincar que tu aprendeste com prazer a pensar, com os teus pais.
É manipulando, movendo objectos, pedras, por exemplo, que chegamos ao pensamento de seriação ou ordenação de objecto. A seriação no tempo implica adquirir a noção de tempo. Já aprendeste na escola que abstrair e generalizar são as operações mentais que permitem passar do concreto ao abstracto e do singular ao plural. O que empolga verdadeiramente um aluno ou um filho é a descoberta inesperada do prazer com que professores e pais partilham o saber.

- É isso mesmo, Avô. É quando eu me sinto melhor que aprendo mais facilmente, como um jogo em que eu me divirto imenso.

27 agosto 2009

36. Celebrar a vida





"Concerto para piano nº2" de Rachmaninoff

Só exercendo, positivamente, a agressividade humana, temperando-a, sempre, com a tolerância e o amor do instinto de vida, poderá o leitor conquistar o direito à diferença da sua individualidade pessoal, à maturidade da sua identidade.
Partilhar com os outros a experiência, única, de viver, infinitamente, a finitude de cada momento, na beleza e na paz da Volúpia dos Dias, é o segredo que pode ajudá-la a desvendar os mistérios insondáveis da Vida. Só partilhando poderá aspirar ao Belo e à dignidade e orgulho de viver em Ética. E só assim poderá, algum dia, por que não hoje? , aspirar e merecer Viver Feliz.
De facto, à partida, nada, mas absolutamente nada, está definitivamente escrito. E a mais sublime aventura de viver consiste em ter de escrever, como numa folha em branco, o dia-a-dia da vida que tem a liberdade de escolher. Como os navegantes portugueses,

dia a dia, Navegavam sem o mapa que faziam
(Sophia de Mello Breyner).

Ou, como jamais se cansará de nos repetir David Mourão-Ferreira: “Na vida ou se resiste ou se desiste”.
Cabe-lhe a si escolher entre vergar-se a um destino infeliz, desistindo de viver, ou, pelo contrário, resistir, erguer-se contra todas as crendices que povoam o seu imaginário. Desafiando deuses e monstrengos da bruma das suas memórias e do seu inconsciente individual e colectivo. Apenas poderá amar e ser amada se conquistar, palmo-a-palmo, afirmativamente, o seu território e espaço pessoal. Opondo-se ao fascínio e nostalgia de regressar ao calor e humidade, outrora geradores de vida, do útero que a protegeu, à terra que a criou.
De facto, nada está, definitivamente, predeterminado. Tem o espaço de liberdade de escolher reconciliar-se, ou não, consigo, com os outros, com a vida.

- Ouvi tudo o que me disseste, avô, mas não chego a perceber se afinal de contas somos livres de escolher a nossa vida ou predeterminados por uma espécie de destino.

- Talvez as coisas se tornem mais simples se introduzires a palavra tendencialmente: os homens são tendencialmente livres ou tendencialmente predeterminados? E se, por outro lado, aceitares que há conceitos-limite a que só se chegará quando houver um grande avanço do pensamento humano. Isto para te dizer que livre arbítrio é um conceito-limite a que chegaremos quando dependermos cada vez menos de superstições, crendices e da alegada tirania dos genes. O programa genético é uma espécie de partitura que cada pessoa interpretará à sua maneira, ímpar e pessoal, como acontece na música. Por mais estranho que pareça, cada músico tem a sua sensibilidade. Se vários músicos com instrumentos como a voz, o piano, o violoncelo, por exemplo, executarem uma partitura, repararás que cada um deles tirará do instrumento uma sonoridade só sua, diferente dos outros. Por outras palavras, cada pessoa tem capacidades próprias inscritas nos seus genes. Mas o que estes contêm é apenas uma potencialidade, uma partitura pronta a ser interpretada, a ser vivida em liberdade. A carga genética não é o único factor determinante do futuro, e é da interacção desta carga genética com outros factores que a partitura será interpretada e resultará o percurso de cada um.

- Agora percebo melhor o que me disseste sobre iliteracia, das pessoas ouvirem e lerem correctamente, mas não perceberem nada do que leram. E percebo também as dificuldades que por vezes tenho em perceber as coisas, apesar de não ser analfabeto, nem iletrado, e muito menos doente com uma espécie de dislexia em que trocasse tudo. Será que é isto, avô, que tu queres dizer quando falas em aprender-a-pensar, em “Filosofia para crianças”?

- Verás que sim. Nada se faz se não aprendermos a pensar, e nada aprenderemos se não o fizermos como uma brincadeira, um jogo, como o prazer que temos aqui ao aprendermos em conjunto. Quando nasceste, trazias já todas as tuas capacidades, mas estas estavam como que adormecidas em ti. Ou seja, antes de seres, de existires, já o eras, potencialmente. Mas foi a magia da voz, do calor, das mãos, do sabor e cheiro da tua mãe, que despertou a bela-adormecida que trazias em ti. E tu passaste a falar, a andar, pensar, a gostar de amar e ser amado. Como, também, foi o amor de uma mulher que libertou o holandês errante da maldição de, para todo o sempre, estar condenado a aproar ao mar o Navio Fantasma sem esperança de algum dia poder ficar em paz em terra firme.

24 agosto 2009

35. Reiventar o Sonho



"Assim falava Zarathustra" de Richard Strauss

Já reparou, leitora, que convive melhor com os seus afectos. Confrontar-se com as suas emoções, agradáveis ou não, aquece-lhe o sangue e ajuda-a a derreter o gelo que criou ou criaram em si. O facto é que a partida da sua mãe e das suas filhas mexem muito consigo. Todos temos medo do vazio. É por isso que lhe digo, cara leitora, não há alternativa, tem de fazer-se à vida. E sempre que ecoarem avisos de desgraça por desejar desafiar a vida e ousar partir, só lhe resta erguer a cabeça e, desassombradamente, com Pessoa, clamar:


...Mais que o mostrengo, que mia alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme...

de perseguir
E, incessantemente,
Reinventar o Sonho de Viver

Quem não sentiu, já, estes e outros mostrengos dentro de si? É caso para perguntar se a leitora se sente condenada a uma essência de vida pré-estabelecida. Ou, muito pelo contrário, é existindo que cumpre a liberdade de ir escrevendo a vida que deseja para si? Talvez Essência e Existência se não precedam nem sucedam uma à outra. Mas, tão só, mutuamente se contenham, como as faces de uma moeda. E, reciprocamente, interajam. Nem a sua Essência é um qualquer destino predeterminado. Nem, tão pouco, seria possível existir se não nascesse com o seu código genético pessoal de sobrevivência. Não resultará a vida do jogo dialéctico entre Determinismo e Livre Arbítrio? Dialéctica entre o Determinismo do seu programa genético e o Livre Arbítrio de escrever, na convivência com os outros, o seu sentido pessoal de Existir.

20 agosto 2009

34. Se ao menos pudesse



Concerto para violino de Beethovan, andamento 1
- Talvez aches estranho dizer-te que apesar de sabermos cada vez mais sobre a origem da vida e da morte, isso ajuda-nos muito pouco a apreender o sentido da vida, de onde vimos, para onde vamos, quer sejamos crentes ou ateus. As pessoas precisam de sentir o chão que seus pés pisam, sejam panteístas, para quem tudo é Deus, sejam ateus, ou agnósticos. A Um Deus Desconhecido de John Steinbeck e A Oratória Carmina Burana de Carl Orff são dois exemplos de arte profana, não sagrada, que celebram o Além, o que quer que Este seja. E foi preciso chegar ao Cristianismo para clarificar a diferença entre o Bem e o Mal, entre Deus e o demónio. Deves achar esta Metafísica toda um bocado confusa, mas como a palavra indica, a Metafísica está para além da compreensão do mundo físico pela mente humana.

- Só que no meio disto tudo fico sem saber se é possível ou não provarmos que Deus existe avô?

- Aí está uma questão que divide crentes e racionalistas.

- Queres dizer que para o crente, Deus é tão natural como toda a Natureza, como uma espécie de membro nato de tudo quanto existe?


- Podemos de facto colocar a questão dessa maneira, de Deus ser um dado imediato do conhecimento por existir desde o início de tudo e ser o que a tudo dá sentido. Dito desta maneira, não seria preciso demonstrar a sua existência porque Deus se confunde com o Universo e estaria na origem dele.

- Se assim é, está tudo resolvido, Deus existe porque existe.


- Então o que fizeste da tua Dialéctica, da análise sistemática entre as duas faces da mesma moeda? Repara que, afirmar que Deus é um dado imediato do conhecimento é para eles, dizer que a crença em Deus é uma adesão imediata da pessoa, um estado de graça, a Fé, não é um acto de inteligência demonstrável. Quando muito poderia querer dizer que Deus é a inteligência e a inteligência é Deus, mas os Teólogos insistem que Deus está presente em tudo, mas está para além do que existe. Esta é a doutrina da Igreja Católica mas, curiosamente, não é a atitude de todos os católicos. Para alguns, a ideia que acreditar em Deus não é um acto de inteligência mas de fé, retirar-Lhe-ia a suprema e total perfeição. - Tenho impressão que só agora é que eu percebi a Divina Comédia (1874) de Antero de Quental: ...Deuses, por que nos criastes? Homens, por que nos criastes? Será que Antero chama Divina Comédia à necessidade de alguns católicos serem mais papistas que o Papa, desejarem um Deus ainda mais absoluto e perfeito do que Aquele que tudo teria criado?

- Já agora, queres saber o que discutem Criacionistas e Evolucionistas? - Claro, avô.

- Falaremos disso um destes dias.

17 agosto 2009

32. Justiça do Rei Salomão




"20º Concerto II" de Mozart

O mais sublime fresco do amor de mãe, é-nos dado por Bertold Brecht no seu Círculo de giz caucasiano, levado à cena, entre nós, por João Lourenço, Rui Mendes, Irene Cruz e outros: Duas mulheres reclamam direitos sobre uma criança. Para saber qual delas era a mãe, o Rei Salomão desenha no chão de terra batida uma circunferência com uma vara, pedindo-lhes para se colocarem no interior com a menina, dizendo-lhes: “dentre vós, a que conseguir retirar a criança para fora do círculo, é a mãe”. Precipitaram-se ambas sobre a menina puxando-a contra elas, procurando provar o amor de mãe. Até que uma, larga a criança, ergue os braços aos céus e clama: “minha querida filha!”.

O rei Salomão, emocionado por o seu povo ter conseguido, espontaneamente, chegar à justiça, premiou a mulher que preferiu largar a filha a desmembrá-la, dizendo-lhe “leva a tua filha”.

13 agosto 2009

31. Com um rebuçado é mais fácil


"A bela adormecida" de Tcaikovsky

Se punirmos uma criança de cada vez que ela prevarica ou tem más notas, estamos a reforçar negativamente o comportamento negativo. Se valorizarmos o sentido de dignidade e de orgulho pessoal, de auto-estima, premiando a criança sempre que tem boas notas ou se porta bem, estamos, pelo contrário, a reforçar positivamente um comportamento positivo. O reforço negativo acaba por transformar a criança num masoquista e, pior do que isso, a prazo, num sado-masoquista. Quando se castiga uma criança, é essencial que ela perceba claramente a razão porque foi castigada, o que nem sempre acontece. Muitas vezes a criança acaba por apanhar por tabela os conflitos na família, na escola. É evidente que a criança não gosta de ser castigada e muito menos se não compreender a razão, e irá reagir à violência com violência, embrulhando-se numa situação de que

quanto mais punida é, mais revoltada fica, e quanto mais revoltada e agressiva se torna, mais punida é, num ciclo infernal, sem solução fácil. E da mesma maneira que a violência gera violência, a tolerância gera tolerância e amor.

10 agosto 2009

30. Se não gosta de palha...



"Suite Alentejana nº1" de Luis Freitas Branco

As pessoas são como são, felizmente não somos todos iguais. E diz-me que não gosta de palha. Se não gosta, não tem que comer. Tem que tentar transformar a palha que é por vezes o seu trabalho num ambiente mais agradável. Já consegue dizer: “eu não gosto disto, daquilo”. Mas está ainda em esforço para consegui-lo. Se não conseguir hoje, não é tragédia nenhuma. Pergunta-me o que eu quero. Eu, definitivamente, não quero nada. Aqui quem deve querer é o leitor. Importo-me consigo no sentido de saber quais vão ser as suas escolhas. Se me disser que vai continuar na mesma, o que eu farei é colocar-lhe um espelho a ver se gosta da figura que faz. O seu Ser-Pensante-Sensível é aquilo em que acredita e que o move. Se se mantiver fiel a si, a leitora pode fazer-se e refazer-se à vida, mesmo que a esfera de pedra do seu Ideal lhe escape das mãos e role até ao sopé, recomeçará, como Sísifo, a fazer-se à montanha da vida...

Era uma vez um rapaz e uma rapariga um pouco mais velhos do que tu que namoravam com muita força, com muita pressa, mas que eram horrivelmente ciumentos um do outro, Beatriz e Alberto de seus nomes. Um dia a Beatriz, meio envergonhada, veio chorar no meu ombro porque o namorado não a deixava em paz, estava constantemente a ir ao seu correio electrónico, ao telemóvel, à pasta, à procura de segredos.
É altura para te perguntar, primeiro, o que o Alberto faz, é bonito ou feio?

- Bem, lá estás tu outra vez com aquela história da flor e de Kant considerar moral apenas o comportamento que pode ser universalizado, feito por toda a gente. E o que conseguiste, avô, foi eu não levar a flor à minha mãe. Foi uma bela partida que me pregaste mas aprendi de uma vez por todas o que também já aprendi com a professora de Filosofia para crianças, que é o mito da caverna, de Platão, ou as sombras chinesas, as sombras que conseguimos projectar, com a mão, numa parede como se fosse por exemplo a cabeça de uma avestruz a abrir e a fechar o bico. Todos na classe dissemos sem hesitação que era a cabeça de uma avestruz, e afinal era a professora que dobrava a mão à frente de uma lâmpada e divertia-se a afastar os dedos estendidos... Ficámos todos envergonhados com a nossa certeza, mas a partir dessa altura, quando eu vejo, ouço, cheiro qualquer coisa, sei que o que eu sinto é apenas uma sombra, a parte que se vê do iceberg.

- Podemos voltar agora à Beatriz e ao Alberto. O que é que tu achas?

- Com franqueza, avô, por favor não ofendas a minha inteligência...
É claro que é muito feio o Alberto ir às escondidas tentar saber se a Beatriz tinha outro namorado. Ele é o único responsável pelo que faz. Não sei como é que a Beatriz suporta isso.

- Suporta pessimamente.

O que acontece é que a Beatriz é uma linda rapariga, amorosa, gosta mesmo muito do Alberto, só que está numa idade em que adora abonecar-se e quando passa na rua delicia-se a reparar no olhar dos rapazes.

E então, não é normal? Não é bom ver uma rapariga ou um rapaz bonitos, era só o que faltava! E se não são bonitos, tão bonitos como gostariam, só têm uma hipótese. Descobrir e tirar partido do que têm... Imagina que eu já tenho visto rapazes e raparigas que, se olharmos bem, não têm gracinha nenhuma. Ou é a boca pequena ou grande demais, com o peito é a mesma coisa, enfim não há paciência. Mas o que é engraçado é que há pessoas que

podem não dever nada à Natureza mas que encontram o seu tipo certo.

- Não me digas, avô, que é como aquela expressão “mais vale cair em graça do que ser engraçado”... E se calhar a Beatriz é mesmo uma gracinha.

- Ora bem, é por essas e por outras que o Alberto faz aquelas tristes figuras. É claro que é feio espiar o telemóvel ou a pasta da namorada, mas se calhar ele não é santo e é ela talvez que lhe cria macaquinhos no sótão e o deixa completamente desassossegado. Apesar de não ter dúvida que a Beatriz gosta muito dele.

- Ena, avô, deste uma cambalhota completa ao caso.

- Pois, mas mais uma vez deixaste o pensamento dialéctico de que já falámos no bolso, em vez de o teres sempre a jeito.

- Já agora gostava de saber como é que a história acabou.

- Como se diz na minha terra: “a falar é que a gente se entende”. E foi conversando com os dois que eles puderam compreender que nem a Beatriz era uma vaidosa nem o Alberto era tão ciumento como parecia. Eles estavam era, e continuam, perdidinhos um pelo outro. - Não há nada como um fim cor-de-rosa ou, tout est bien qui finit bien.


06 agosto 2009

28. Revisitar-se



Carmen de Bizet

É deste nosso tempo que precisa, cara leitora. Não lhe disse que estamos numa relação em vasos comunicantes? Comunicar comigo cria-lhe o desejo de continuar a descobrir-se.

Mais importante do que desabafar e descomprimir é esta convivência intimista com o seu subconsciente. Conviver com o seu espaço interior e revisitar-se não tem nada de autista, visto que partilha dúvidas e contradições, o que corresponde a um relançamento da tendência gregária de todos nós. Isto é tanto mais interessante quanto a memória distorce, muitas vezes, o que realmente aconteceu, como sabe.

Já conheceu, seguramente, alguém que a faz sentir-se num oásis, como outros que diabolizam pessoas e acontecimentos à sua volta, dividindo-as em boas e más. É agradável e até pode ser inocente sentir-se num oásis. Só que uma coisa é gostar de ser apreciada e outra é deixar-se enredar no jogo de yes men ou yes women profissionais em afagar-lhe o Ego e engrandecê-la. Deixar-se embalar nessa relação narcísica seria o oposto do que tem vindo a fazer ao longo destas leituras, em que tem trilhado o seu caminho pessoal, independentemente das modas do momento.

Partilhar as suas memórias emocionais neste espaço permite-lhe

relativizar e desdramatizar bastante o que se passa à sua volta e recusar a tentação de separar as pessoas em boas e más.

Como todos nós, a leitora contém em si contradições, ambivalências, tolerância, intolerância.

Caso lhe seja difícil aceitar que nem sempre está de acordo com as minhas palavras e silêncios, arrisca-se a idealizar a nossa relação e a eleger-me o bom-da-fita. O que não só é falso como é

negativo para si ficar dominada pelo medo que eu a abandone.

Ora, nem a leitora nem eu somos apenas bom ou mau de todas as fitas que vamos vivendo.

- Não percebi nada avô quando, há tempos, me disseste que há pessoas que se complementam negativamente. Complementar-se saudavelmente, criar empatia entre as pessoas, julgo que percebi.

- Deixa-me contar-te uma história, triste por sinal. Era uma vez um jovem casal que desejava muito ter filhos. Três anos depois do nascimento de um rapaz, os pais divorciaram-se e estabeleceu-se entre eles uma disputa sobre qual dos pais amava mais a criança e era mais amado por ela.

Ambos viviam obcecados para não ser o mau da fita e, para mostrar o amor ao filho, multiplicavam-se, cada um deles por seu lado, em carinhos, presentes, etc. Aqui está um exemplo de a criança se ver envolvida numa guerra que não era sua mas que, para além do sofrimento dela e de cada um dos pais, resultava numa tentativa de posse narcísica da criança, o que a infantilizava. Cada um deles amava-se a si próprio na medida em que a criança era apenas um prolongamento de si.

- Quer dizer, avô, que essa triste história é o que se passa com quase metade dos colegas da minha turma, que são filhos de pais separados?...

- A história que te contei é triste porque triste é toda a ruptura na continuidade do devir, do acontecer. Infelizmente existem cada vez mais casos de pais separados e famílias monoparentais, mas, da mesma maneira que existem dias nublados, há também dias de sol. É um exemplo um pouco simplista, mas que é escolhido de propósito para te dizer que há muitas coisas que nós gostamos menos ou não gostamos de todo mas que temos que aprender a lidar com elas, contorná-las, reinventar a vida. Nesta situação, por exemplo, que eu conheci pessoalmente, tudo

acabou em bem, mas para o merecerem foi preciso os três comerem o pão que o diabo amassou.

03 agosto 2009

26. Ajustar contas com a vida




"Sinfonia nº9 IV" de Beethoven

Saberá por certo que todos quantos alguma vez se sentiram mal-amados, abandonados, excluídos, se arriscam a passar o tempo a ajustar contas com a vida, violentando-se e aos outros.

Como uma vez mais nos ensina John Steinbeck em A Pérola: numa pacífica aldeia de pescadores perdida na memória dos tempos em remotas paragens, como ainda hoje, aqui e agora, uma qualquer pessoa pobre descobre uma pérola de invulgar beleza e inestimável valor. Os pescadores e suas famílias, que sempre partilharam com alegria os riscos e a dureza da vida de pescadores de pérolas, transformam-se em invejosos rivais. Esta insuspeitável violência, entre as famílias e dentro da própria família, só foi resolvida quando o pescador devolve a pérola ao mar, qual exorcismo do mal! E o que é curioso na noção de mimésis, como na belíssima história de Steinbeck, é que aquilo que une pacificamente as pessoas é uma situação que os aproxima a todos, apesar da extrema pobreza e sacrifícios. Na mimésis como n’A Pérola tudo seria diferente se todos tivessem encontrado pérolas gigantes.
Não é, por conseguinte, a mística miserabilista que salva os desgraçados e pobres humanos, mas a igualdade de oportunidades, boas ou menos boas, para todos.

30 julho 2009

25. A violencia gera violência


"Walkiria" de Richard Wagner

Grande parte da violência individual e colectiva tem a ver com a máxima da sabedoria popular: “a violência gera violência como, a tolerância, tolerância e o amor, amor.” Recordar-se-á que para o renascentista Espinosa, a violência tem a sua origem na mimésis, isto é, na inveja devoradora de todos quantos não conseguimos imitar. Se não conseguirmos sublimar e conter a inveja pelos sucessos conseguidos pelos outros, arriscamo-nos a perder o controlo da agressividade e tornarmo-nos violentos.

As crises de Valores comprometem a capacidade de as matrizes naturais familiar, social, cultural conterem a agressividade e a violência. Sabe bem, leitor, que a autoridade sem autoritarismo é, nas sociedades humanas como nas animais, o garante da resolução da conflitualidade potencial contida na dinâmica de todos os grupos. Mas é o afecto que determina a capacidade de preservar o seu ser, melhorando o discernimento da inteligência e a capacidade de agir.


- Não percebo bem, avô, quando falas de conflitos entre raças e ricos e pobres.


- Há séculos que existem diferenças. Se te contar o que me aconteceu uma vez em África perceberás melhor. Estava eu com um grupo de jovens africanos, rapazes e raparigas de raça negra, justamente a conversar sobre conflitos entre grupos, e um dos africanos saiu-se com esta: quando está um grupo de brancos e entra um preto, os brancos naturalmente dizem ou pensam, “lá vem um preto!”. E o que é curioso é que se estiver um grupo de pretos e entrar um branco, também pensam naturalmente, “lá vem um branco!”.

Como vês, em ambas as situações é a mesma verdade: é uma pessoa diferente que aparece naturalmente. Mas isto que é natural transforma-se num acto racista se, por exemplo, os brancos atirarem para cima do preto recém-chegado as suas frustrações e complexos, ou o contrário.

Aí passa a ser: “que maçada, lá vem um preto!”


- Então porque é que uma coisa natural como a cor da pele pode provocar um conflito racial, só por causa dos complexos?


- Parece um exagero, mas é isso que acontece. É que todos, brancos ou pretos, temos dias bons e dias maus, temos orgulho no que fazemos e, por vezes, vergonha do que pensamos, e tu sabes que a vida pode ser madrasta para muita gente. E é a vergonha de, por exemplo, nos sentirmos ridículos, magrinhos ou gordinhos, que nos incomoda.

Como também ser injustiçado sem razão, abandonado, rejeitado. Jogar fora, atirar para cima dos outros esse mau estar, é uma maneira rápida de tentar esquecer, sem sofrer.


- Agora já vou percebendo porque é que há tanta violência e tantos conflitos.


27 julho 2009

24. Renascer



"4ª Sinfonia IV" de Mahler (Sehr Behagich)


O leitor está aqui numa gestação psíquica, em busca de si. No termo dela poderá parir-se, renascer, simples como isto.


Tem uma vida à sua frente, pode abandonar-se confiantemente e aceitar viver. É um trabalho com rede, sem riscos. Estamos envolvidos por uma pele psicológica (Esther Bick), que nos permite soltarmo-nos sem perigo. Repare onde veio meter-se, é uma viagem fascinante ao fundo de si mesmo. Pode galopar a vida, desassombradamente, libertar-se das crendices da infância dos povos e da sua própria. Provar que os mostrengos são apenas fruto do desconhecido, das brumas onde medram todas as crendices e superstições.


Pode descomprimir, mas não está num confessionário, aqui não há penitência, nem punições. O que existe é um espelho e terá que decidir se gosta, ou não, da imagem que vê reflectida.