É deste nosso tempo que precisa, cara leitora. Não lhe disse que estamos numa relação em vasos comunicantes? Comunicar comigo cria-lhe o desejo de continuar a descobrir-se.
Mais importante do que desabafar e descomprimir é esta convivência intimista com o seu subconsciente. Conviver com o seu espaço interior e revisitar-se não tem nada de autista, visto que partilha dúvidas e contradições, o que corresponde a um relançamento da tendência gregária de todos nós. Isto é tanto mais interessante quanto a memória distorce, muitas vezes, o que realmente aconteceu, como sabe.
Já conheceu, seguramente, alguém que a faz sentir-se num oásis, como outros que diabolizam pessoas e acontecimentos à sua volta, dividindo-as em boas e más. É agradável e até pode ser inocente sentir-se num oásis. Só que uma coisa é gostar de ser apreciada e outra é deixar-se enredar no jogo de yes men ou yes women profissionais em afagar-lhe o Ego e engrandecê-la. Deixar-se embalar nessa relação narcísica seria o oposto do que tem vindo a fazer ao longo destas leituras, em que tem trilhado o seu caminho pessoal, independentemente das modas do momento.
Partilhar as suas memórias emocionais neste espaço permite-lhe
relativizar e desdramatizar bastante o que se passa à sua volta e recusar a tentação de separar as pessoas em boas e más.
Como todos nós, a leitora contém em si contradições, ambivalências, tolerância, intolerância.
Caso lhe seja difícil aceitar que nem sempre está de acordo com as minhas palavras e silêncios, arrisca-se a idealizar a nossa relação e a eleger-me o bom-da-fita. O que não só é falso como é
negativo para si ficar dominada pelo medo que eu a abandone.
Ora, nem a leitora nem eu somos apenas bom ou mau de todas as fitas que vamos vivendo.
- Não percebi nada avô quando, há tempos, me disseste que há pessoas que se complementam negativamente. Complementar-se saudavelmente, criar empatia entre as pessoas, julgo que percebi.
- Deixa-me contar-te uma história, triste por sinal. Era uma vez um jovem casal que desejava muito ter filhos. Três anos depois do nascimento de um rapaz, os pais divorciaram-se e estabeleceu-se entre eles uma disputa sobre qual dos pais amava mais a criança e era mais amado por ela.
Ambos viviam obcecados para não ser o mau da fita e, para mostrar o amor ao filho, multiplicavam-se, cada um deles por seu lado, em carinhos, presentes, etc. Aqui está um exemplo de a criança se ver envolvida numa guerra que não era sua mas que, para além do sofrimento dela e de cada um dos pais, resultava numa tentativa de posse narcísica da criança, o que a infantilizava. Cada um deles amava-se a si próprio na medida em que a criança era apenas um prolongamento de si.
- Quer dizer, avô, que essa triste história é o que se passa com quase metade dos colegas da minha turma, que são filhos de pais separados?...
- A história que te contei é triste porque triste é toda a ruptura na continuidade do devir, do acontecer. Infelizmente existem cada vez mais casos de pais separados e famílias monoparentais, mas, da mesma maneira que existem dias nublados, há também dias de sol. É um exemplo um pouco simplista, mas que é escolhido de propósito para te dizer que há muitas coisas que nós gostamos menos ou não gostamos de todo mas que temos que aprender a lidar com elas, contorná-las, reinventar a vida. Nesta situação, por exemplo, que eu conheci pessoalmente, tudo
acabou em bem, mas para o merecerem foi preciso os três comerem o pão que o diabo amassou.
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