Bem-vindos


a este vosso novo Blog, tratem-no bem ou mal conforme merecer, mas por favor reajam, participem. Iniciá-lo-emos com a publicação de excertos de um manuscrito original já publicado na Zéfiro editora:

MEMÓRIAS DE UM PSICANALISTA
José Carlos DIAS CORDEIRO


Deixe-me dizer-lhe o que alguém me confidenciou:

... eu tenho tudo na vida mas falta-me a alegria e a paixão de viver.


que pedras terei de mover no tabuleiro do meu dia-a-dia para conseguir surpreender-me de novo, reconciliar-me comigo, com os outros e viver?


Esta é uma questão que o leitor aprenderá a responder. E fá-lo-á com a ajuda de um jovem fascinado pela vida e de seu avô, um psicanalista interessado em escutar palavras, silêncios, dúvidas que todos temos.

Este livro vive de duas experiências:

  • as memórias de um psicanalista

  • a volúpia, única, de pessoas como você conseguirem resgatar-se do fundo de si mesmas e renascerem para a VIDA.

10 agosto 2009

30. Se não gosta de palha...



"Suite Alentejana nº1" de Luis Freitas Branco

As pessoas são como são, felizmente não somos todos iguais. E diz-me que não gosta de palha. Se não gosta, não tem que comer. Tem que tentar transformar a palha que é por vezes o seu trabalho num ambiente mais agradável. Já consegue dizer: “eu não gosto disto, daquilo”. Mas está ainda em esforço para consegui-lo. Se não conseguir hoje, não é tragédia nenhuma. Pergunta-me o que eu quero. Eu, definitivamente, não quero nada. Aqui quem deve querer é o leitor. Importo-me consigo no sentido de saber quais vão ser as suas escolhas. Se me disser que vai continuar na mesma, o que eu farei é colocar-lhe um espelho a ver se gosta da figura que faz. O seu Ser-Pensante-Sensível é aquilo em que acredita e que o move. Se se mantiver fiel a si, a leitora pode fazer-se e refazer-se à vida, mesmo que a esfera de pedra do seu Ideal lhe escape das mãos e role até ao sopé, recomeçará, como Sísifo, a fazer-se à montanha da vida...

Era uma vez um rapaz e uma rapariga um pouco mais velhos do que tu que namoravam com muita força, com muita pressa, mas que eram horrivelmente ciumentos um do outro, Beatriz e Alberto de seus nomes. Um dia a Beatriz, meio envergonhada, veio chorar no meu ombro porque o namorado não a deixava em paz, estava constantemente a ir ao seu correio electrónico, ao telemóvel, à pasta, à procura de segredos.
É altura para te perguntar, primeiro, o que o Alberto faz, é bonito ou feio?

- Bem, lá estás tu outra vez com aquela história da flor e de Kant considerar moral apenas o comportamento que pode ser universalizado, feito por toda a gente. E o que conseguiste, avô, foi eu não levar a flor à minha mãe. Foi uma bela partida que me pregaste mas aprendi de uma vez por todas o que também já aprendi com a professora de Filosofia para crianças, que é o mito da caverna, de Platão, ou as sombras chinesas, as sombras que conseguimos projectar, com a mão, numa parede como se fosse por exemplo a cabeça de uma avestruz a abrir e a fechar o bico. Todos na classe dissemos sem hesitação que era a cabeça de uma avestruz, e afinal era a professora que dobrava a mão à frente de uma lâmpada e divertia-se a afastar os dedos estendidos... Ficámos todos envergonhados com a nossa certeza, mas a partir dessa altura, quando eu vejo, ouço, cheiro qualquer coisa, sei que o que eu sinto é apenas uma sombra, a parte que se vê do iceberg.

- Podemos voltar agora à Beatriz e ao Alberto. O que é que tu achas?

- Com franqueza, avô, por favor não ofendas a minha inteligência...
É claro que é muito feio o Alberto ir às escondidas tentar saber se a Beatriz tinha outro namorado. Ele é o único responsável pelo que faz. Não sei como é que a Beatriz suporta isso.

- Suporta pessimamente.

O que acontece é que a Beatriz é uma linda rapariga, amorosa, gosta mesmo muito do Alberto, só que está numa idade em que adora abonecar-se e quando passa na rua delicia-se a reparar no olhar dos rapazes.

E então, não é normal? Não é bom ver uma rapariga ou um rapaz bonitos, era só o que faltava! E se não são bonitos, tão bonitos como gostariam, só têm uma hipótese. Descobrir e tirar partido do que têm... Imagina que eu já tenho visto rapazes e raparigas que, se olharmos bem, não têm gracinha nenhuma. Ou é a boca pequena ou grande demais, com o peito é a mesma coisa, enfim não há paciência. Mas o que é engraçado é que há pessoas que

podem não dever nada à Natureza mas que encontram o seu tipo certo.

- Não me digas, avô, que é como aquela expressão “mais vale cair em graça do que ser engraçado”... E se calhar a Beatriz é mesmo uma gracinha.

- Ora bem, é por essas e por outras que o Alberto faz aquelas tristes figuras. É claro que é feio espiar o telemóvel ou a pasta da namorada, mas se calhar ele não é santo e é ela talvez que lhe cria macaquinhos no sótão e o deixa completamente desassossegado. Apesar de não ter dúvida que a Beatriz gosta muito dele.

- Ena, avô, deste uma cambalhota completa ao caso.

- Pois, mas mais uma vez deixaste o pensamento dialéctico de que já falámos no bolso, em vez de o teres sempre a jeito.

- Já agora gostava de saber como é que a história acabou.

- Como se diz na minha terra: “a falar é que a gente se entende”. E foi conversando com os dois que eles puderam compreender que nem a Beatriz era uma vaidosa nem o Alberto era tão ciumento como parecia. Eles estavam era, e continuam, perdidinhos um pelo outro. - Não há nada como um fim cor-de-rosa ou, tout est bien qui finit bien.


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