Bem-vindos


a este vosso novo Blog, tratem-no bem ou mal conforme merecer, mas por favor reajam, participem. Iniciá-lo-emos com a publicação de excertos de um manuscrito original já publicado na Zéfiro editora:

MEMÓRIAS DE UM PSICANALISTA
José Carlos DIAS CORDEIRO


Deixe-me dizer-lhe o que alguém me confidenciou:

... eu tenho tudo na vida mas falta-me a alegria e a paixão de viver.


que pedras terei de mover no tabuleiro do meu dia-a-dia para conseguir surpreender-me de novo, reconciliar-me comigo, com os outros e viver?


Esta é uma questão que o leitor aprenderá a responder. E fá-lo-á com a ajuda de um jovem fascinado pela vida e de seu avô, um psicanalista interessado em escutar palavras, silêncios, dúvidas que todos temos.

Este livro vive de duas experiências:

  • as memórias de um psicanalista

  • a volúpia, única, de pessoas como você conseguirem resgatar-se do fundo de si mesmas e renascerem para a VIDA.

31 agosto 2009

38. Mesmo em silêncio


"Concerto n 21, 3º Mov. para piano" de Mozart

- É curioso as associações livres que continuam a ocorrer-me quando falamos. O que é que consideras que é ser um bom professor, um bom pai? Achas que é transmitir bem os conhecimentos?

- Acho que sim, avô, mas também é verdade que há professores muito maçadores.

- E por que é que isso acontecerá? Não será falta de prazer em aprender e ensinar?

- Claro, sem interesse e prazer não se aprende nada.

- Exactamente. Sem prazer na relação entre educadores e jovens não existe comunicação. É a chama do prazer que aquece e ilumina a curiosidade. Foi também a brincar que tu aprendeste com prazer a pensar, com os teus pais.
É manipulando, movendo objectos, pedras, por exemplo, que chegamos ao pensamento de seriação ou ordenação de objecto. A seriação no tempo implica adquirir a noção de tempo. Já aprendeste na escola que abstrair e generalizar são as operações mentais que permitem passar do concreto ao abstracto e do singular ao plural. O que empolga verdadeiramente um aluno ou um filho é a descoberta inesperada do prazer com que professores e pais partilham o saber.

- É isso mesmo, Avô. É quando eu me sinto melhor que aprendo mais facilmente, como um jogo em que eu me divirto imenso.

27 agosto 2009

36. Celebrar a vida





"Concerto para piano nº2" de Rachmaninoff

Só exercendo, positivamente, a agressividade humana, temperando-a, sempre, com a tolerância e o amor do instinto de vida, poderá o leitor conquistar o direito à diferença da sua individualidade pessoal, à maturidade da sua identidade.
Partilhar com os outros a experiência, única, de viver, infinitamente, a finitude de cada momento, na beleza e na paz da Volúpia dos Dias, é o segredo que pode ajudá-la a desvendar os mistérios insondáveis da Vida. Só partilhando poderá aspirar ao Belo e à dignidade e orgulho de viver em Ética. E só assim poderá, algum dia, por que não hoje? , aspirar e merecer Viver Feliz.
De facto, à partida, nada, mas absolutamente nada, está definitivamente escrito. E a mais sublime aventura de viver consiste em ter de escrever, como numa folha em branco, o dia-a-dia da vida que tem a liberdade de escolher. Como os navegantes portugueses,

dia a dia, Navegavam sem o mapa que faziam
(Sophia de Mello Breyner).

Ou, como jamais se cansará de nos repetir David Mourão-Ferreira: “Na vida ou se resiste ou se desiste”.
Cabe-lhe a si escolher entre vergar-se a um destino infeliz, desistindo de viver, ou, pelo contrário, resistir, erguer-se contra todas as crendices que povoam o seu imaginário. Desafiando deuses e monstrengos da bruma das suas memórias e do seu inconsciente individual e colectivo. Apenas poderá amar e ser amada se conquistar, palmo-a-palmo, afirmativamente, o seu território e espaço pessoal. Opondo-se ao fascínio e nostalgia de regressar ao calor e humidade, outrora geradores de vida, do útero que a protegeu, à terra que a criou.
De facto, nada está, definitivamente, predeterminado. Tem o espaço de liberdade de escolher reconciliar-se, ou não, consigo, com os outros, com a vida.

- Ouvi tudo o que me disseste, avô, mas não chego a perceber se afinal de contas somos livres de escolher a nossa vida ou predeterminados por uma espécie de destino.

- Talvez as coisas se tornem mais simples se introduzires a palavra tendencialmente: os homens são tendencialmente livres ou tendencialmente predeterminados? E se, por outro lado, aceitares que há conceitos-limite a que só se chegará quando houver um grande avanço do pensamento humano. Isto para te dizer que livre arbítrio é um conceito-limite a que chegaremos quando dependermos cada vez menos de superstições, crendices e da alegada tirania dos genes. O programa genético é uma espécie de partitura que cada pessoa interpretará à sua maneira, ímpar e pessoal, como acontece na música. Por mais estranho que pareça, cada músico tem a sua sensibilidade. Se vários músicos com instrumentos como a voz, o piano, o violoncelo, por exemplo, executarem uma partitura, repararás que cada um deles tirará do instrumento uma sonoridade só sua, diferente dos outros. Por outras palavras, cada pessoa tem capacidades próprias inscritas nos seus genes. Mas o que estes contêm é apenas uma potencialidade, uma partitura pronta a ser interpretada, a ser vivida em liberdade. A carga genética não é o único factor determinante do futuro, e é da interacção desta carga genética com outros factores que a partitura será interpretada e resultará o percurso de cada um.

- Agora percebo melhor o que me disseste sobre iliteracia, das pessoas ouvirem e lerem correctamente, mas não perceberem nada do que leram. E percebo também as dificuldades que por vezes tenho em perceber as coisas, apesar de não ser analfabeto, nem iletrado, e muito menos doente com uma espécie de dislexia em que trocasse tudo. Será que é isto, avô, que tu queres dizer quando falas em aprender-a-pensar, em “Filosofia para crianças”?

- Verás que sim. Nada se faz se não aprendermos a pensar, e nada aprenderemos se não o fizermos como uma brincadeira, um jogo, como o prazer que temos aqui ao aprendermos em conjunto. Quando nasceste, trazias já todas as tuas capacidades, mas estas estavam como que adormecidas em ti. Ou seja, antes de seres, de existires, já o eras, potencialmente. Mas foi a magia da voz, do calor, das mãos, do sabor e cheiro da tua mãe, que despertou a bela-adormecida que trazias em ti. E tu passaste a falar, a andar, pensar, a gostar de amar e ser amado. Como, também, foi o amor de uma mulher que libertou o holandês errante da maldição de, para todo o sempre, estar condenado a aproar ao mar o Navio Fantasma sem esperança de algum dia poder ficar em paz em terra firme.

24 agosto 2009

35. Reiventar o Sonho



"Assim falava Zarathustra" de Richard Strauss

Já reparou, leitora, que convive melhor com os seus afectos. Confrontar-se com as suas emoções, agradáveis ou não, aquece-lhe o sangue e ajuda-a a derreter o gelo que criou ou criaram em si. O facto é que a partida da sua mãe e das suas filhas mexem muito consigo. Todos temos medo do vazio. É por isso que lhe digo, cara leitora, não há alternativa, tem de fazer-se à vida. E sempre que ecoarem avisos de desgraça por desejar desafiar a vida e ousar partir, só lhe resta erguer a cabeça e, desassombradamente, com Pessoa, clamar:


...Mais que o mostrengo, que mia alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme...

de perseguir
E, incessantemente,
Reinventar o Sonho de Viver

Quem não sentiu, já, estes e outros mostrengos dentro de si? É caso para perguntar se a leitora se sente condenada a uma essência de vida pré-estabelecida. Ou, muito pelo contrário, é existindo que cumpre a liberdade de ir escrevendo a vida que deseja para si? Talvez Essência e Existência se não precedam nem sucedam uma à outra. Mas, tão só, mutuamente se contenham, como as faces de uma moeda. E, reciprocamente, interajam. Nem a sua Essência é um qualquer destino predeterminado. Nem, tão pouco, seria possível existir se não nascesse com o seu código genético pessoal de sobrevivência. Não resultará a vida do jogo dialéctico entre Determinismo e Livre Arbítrio? Dialéctica entre o Determinismo do seu programa genético e o Livre Arbítrio de escrever, na convivência com os outros, o seu sentido pessoal de Existir.

20 agosto 2009

34. Se ao menos pudesse



Concerto para violino de Beethovan, andamento 1
- Talvez aches estranho dizer-te que apesar de sabermos cada vez mais sobre a origem da vida e da morte, isso ajuda-nos muito pouco a apreender o sentido da vida, de onde vimos, para onde vamos, quer sejamos crentes ou ateus. As pessoas precisam de sentir o chão que seus pés pisam, sejam panteístas, para quem tudo é Deus, sejam ateus, ou agnósticos. A Um Deus Desconhecido de John Steinbeck e A Oratória Carmina Burana de Carl Orff são dois exemplos de arte profana, não sagrada, que celebram o Além, o que quer que Este seja. E foi preciso chegar ao Cristianismo para clarificar a diferença entre o Bem e o Mal, entre Deus e o demónio. Deves achar esta Metafísica toda um bocado confusa, mas como a palavra indica, a Metafísica está para além da compreensão do mundo físico pela mente humana.

- Só que no meio disto tudo fico sem saber se é possível ou não provarmos que Deus existe avô?

- Aí está uma questão que divide crentes e racionalistas.

- Queres dizer que para o crente, Deus é tão natural como toda a Natureza, como uma espécie de membro nato de tudo quanto existe?


- Podemos de facto colocar a questão dessa maneira, de Deus ser um dado imediato do conhecimento por existir desde o início de tudo e ser o que a tudo dá sentido. Dito desta maneira, não seria preciso demonstrar a sua existência porque Deus se confunde com o Universo e estaria na origem dele.

- Se assim é, está tudo resolvido, Deus existe porque existe.


- Então o que fizeste da tua Dialéctica, da análise sistemática entre as duas faces da mesma moeda? Repara que, afirmar que Deus é um dado imediato do conhecimento é para eles, dizer que a crença em Deus é uma adesão imediata da pessoa, um estado de graça, a Fé, não é um acto de inteligência demonstrável. Quando muito poderia querer dizer que Deus é a inteligência e a inteligência é Deus, mas os Teólogos insistem que Deus está presente em tudo, mas está para além do que existe. Esta é a doutrina da Igreja Católica mas, curiosamente, não é a atitude de todos os católicos. Para alguns, a ideia que acreditar em Deus não é um acto de inteligência mas de fé, retirar-Lhe-ia a suprema e total perfeição. - Tenho impressão que só agora é que eu percebi a Divina Comédia (1874) de Antero de Quental: ...Deuses, por que nos criastes? Homens, por que nos criastes? Será que Antero chama Divina Comédia à necessidade de alguns católicos serem mais papistas que o Papa, desejarem um Deus ainda mais absoluto e perfeito do que Aquele que tudo teria criado?

- Já agora, queres saber o que discutem Criacionistas e Evolucionistas? - Claro, avô.

- Falaremos disso um destes dias.

17 agosto 2009

32. Justiça do Rei Salomão




"20º Concerto II" de Mozart

O mais sublime fresco do amor de mãe, é-nos dado por Bertold Brecht no seu Círculo de giz caucasiano, levado à cena, entre nós, por João Lourenço, Rui Mendes, Irene Cruz e outros: Duas mulheres reclamam direitos sobre uma criança. Para saber qual delas era a mãe, o Rei Salomão desenha no chão de terra batida uma circunferência com uma vara, pedindo-lhes para se colocarem no interior com a menina, dizendo-lhes: “dentre vós, a que conseguir retirar a criança para fora do círculo, é a mãe”. Precipitaram-se ambas sobre a menina puxando-a contra elas, procurando provar o amor de mãe. Até que uma, larga a criança, ergue os braços aos céus e clama: “minha querida filha!”.

O rei Salomão, emocionado por o seu povo ter conseguido, espontaneamente, chegar à justiça, premiou a mulher que preferiu largar a filha a desmembrá-la, dizendo-lhe “leva a tua filha”.

13 agosto 2009

31. Com um rebuçado é mais fácil


"A bela adormecida" de Tcaikovsky

Se punirmos uma criança de cada vez que ela prevarica ou tem más notas, estamos a reforçar negativamente o comportamento negativo. Se valorizarmos o sentido de dignidade e de orgulho pessoal, de auto-estima, premiando a criança sempre que tem boas notas ou se porta bem, estamos, pelo contrário, a reforçar positivamente um comportamento positivo. O reforço negativo acaba por transformar a criança num masoquista e, pior do que isso, a prazo, num sado-masoquista. Quando se castiga uma criança, é essencial que ela perceba claramente a razão porque foi castigada, o que nem sempre acontece. Muitas vezes a criança acaba por apanhar por tabela os conflitos na família, na escola. É evidente que a criança não gosta de ser castigada e muito menos se não compreender a razão, e irá reagir à violência com violência, embrulhando-se numa situação de que

quanto mais punida é, mais revoltada fica, e quanto mais revoltada e agressiva se torna, mais punida é, num ciclo infernal, sem solução fácil. E da mesma maneira que a violência gera violência, a tolerância gera tolerância e amor.

10 agosto 2009

30. Se não gosta de palha...



"Suite Alentejana nº1" de Luis Freitas Branco

As pessoas são como são, felizmente não somos todos iguais. E diz-me que não gosta de palha. Se não gosta, não tem que comer. Tem que tentar transformar a palha que é por vezes o seu trabalho num ambiente mais agradável. Já consegue dizer: “eu não gosto disto, daquilo”. Mas está ainda em esforço para consegui-lo. Se não conseguir hoje, não é tragédia nenhuma. Pergunta-me o que eu quero. Eu, definitivamente, não quero nada. Aqui quem deve querer é o leitor. Importo-me consigo no sentido de saber quais vão ser as suas escolhas. Se me disser que vai continuar na mesma, o que eu farei é colocar-lhe um espelho a ver se gosta da figura que faz. O seu Ser-Pensante-Sensível é aquilo em que acredita e que o move. Se se mantiver fiel a si, a leitora pode fazer-se e refazer-se à vida, mesmo que a esfera de pedra do seu Ideal lhe escape das mãos e role até ao sopé, recomeçará, como Sísifo, a fazer-se à montanha da vida...

Era uma vez um rapaz e uma rapariga um pouco mais velhos do que tu que namoravam com muita força, com muita pressa, mas que eram horrivelmente ciumentos um do outro, Beatriz e Alberto de seus nomes. Um dia a Beatriz, meio envergonhada, veio chorar no meu ombro porque o namorado não a deixava em paz, estava constantemente a ir ao seu correio electrónico, ao telemóvel, à pasta, à procura de segredos.
É altura para te perguntar, primeiro, o que o Alberto faz, é bonito ou feio?

- Bem, lá estás tu outra vez com aquela história da flor e de Kant considerar moral apenas o comportamento que pode ser universalizado, feito por toda a gente. E o que conseguiste, avô, foi eu não levar a flor à minha mãe. Foi uma bela partida que me pregaste mas aprendi de uma vez por todas o que também já aprendi com a professora de Filosofia para crianças, que é o mito da caverna, de Platão, ou as sombras chinesas, as sombras que conseguimos projectar, com a mão, numa parede como se fosse por exemplo a cabeça de uma avestruz a abrir e a fechar o bico. Todos na classe dissemos sem hesitação que era a cabeça de uma avestruz, e afinal era a professora que dobrava a mão à frente de uma lâmpada e divertia-se a afastar os dedos estendidos... Ficámos todos envergonhados com a nossa certeza, mas a partir dessa altura, quando eu vejo, ouço, cheiro qualquer coisa, sei que o que eu sinto é apenas uma sombra, a parte que se vê do iceberg.

- Podemos voltar agora à Beatriz e ao Alberto. O que é que tu achas?

- Com franqueza, avô, por favor não ofendas a minha inteligência...
É claro que é muito feio o Alberto ir às escondidas tentar saber se a Beatriz tinha outro namorado. Ele é o único responsável pelo que faz. Não sei como é que a Beatriz suporta isso.

- Suporta pessimamente.

O que acontece é que a Beatriz é uma linda rapariga, amorosa, gosta mesmo muito do Alberto, só que está numa idade em que adora abonecar-se e quando passa na rua delicia-se a reparar no olhar dos rapazes.

E então, não é normal? Não é bom ver uma rapariga ou um rapaz bonitos, era só o que faltava! E se não são bonitos, tão bonitos como gostariam, só têm uma hipótese. Descobrir e tirar partido do que têm... Imagina que eu já tenho visto rapazes e raparigas que, se olharmos bem, não têm gracinha nenhuma. Ou é a boca pequena ou grande demais, com o peito é a mesma coisa, enfim não há paciência. Mas o que é engraçado é que há pessoas que

podem não dever nada à Natureza mas que encontram o seu tipo certo.

- Não me digas, avô, que é como aquela expressão “mais vale cair em graça do que ser engraçado”... E se calhar a Beatriz é mesmo uma gracinha.

- Ora bem, é por essas e por outras que o Alberto faz aquelas tristes figuras. É claro que é feio espiar o telemóvel ou a pasta da namorada, mas se calhar ele não é santo e é ela talvez que lhe cria macaquinhos no sótão e o deixa completamente desassossegado. Apesar de não ter dúvida que a Beatriz gosta muito dele.

- Ena, avô, deste uma cambalhota completa ao caso.

- Pois, mas mais uma vez deixaste o pensamento dialéctico de que já falámos no bolso, em vez de o teres sempre a jeito.

- Já agora gostava de saber como é que a história acabou.

- Como se diz na minha terra: “a falar é que a gente se entende”. E foi conversando com os dois que eles puderam compreender que nem a Beatriz era uma vaidosa nem o Alberto era tão ciumento como parecia. Eles estavam era, e continuam, perdidinhos um pelo outro. - Não há nada como um fim cor-de-rosa ou, tout est bien qui finit bien.


06 agosto 2009

28. Revisitar-se



Carmen de Bizet

É deste nosso tempo que precisa, cara leitora. Não lhe disse que estamos numa relação em vasos comunicantes? Comunicar comigo cria-lhe o desejo de continuar a descobrir-se.

Mais importante do que desabafar e descomprimir é esta convivência intimista com o seu subconsciente. Conviver com o seu espaço interior e revisitar-se não tem nada de autista, visto que partilha dúvidas e contradições, o que corresponde a um relançamento da tendência gregária de todos nós. Isto é tanto mais interessante quanto a memória distorce, muitas vezes, o que realmente aconteceu, como sabe.

Já conheceu, seguramente, alguém que a faz sentir-se num oásis, como outros que diabolizam pessoas e acontecimentos à sua volta, dividindo-as em boas e más. É agradável e até pode ser inocente sentir-se num oásis. Só que uma coisa é gostar de ser apreciada e outra é deixar-se enredar no jogo de yes men ou yes women profissionais em afagar-lhe o Ego e engrandecê-la. Deixar-se embalar nessa relação narcísica seria o oposto do que tem vindo a fazer ao longo destas leituras, em que tem trilhado o seu caminho pessoal, independentemente das modas do momento.

Partilhar as suas memórias emocionais neste espaço permite-lhe

relativizar e desdramatizar bastante o que se passa à sua volta e recusar a tentação de separar as pessoas em boas e más.

Como todos nós, a leitora contém em si contradições, ambivalências, tolerância, intolerância.

Caso lhe seja difícil aceitar que nem sempre está de acordo com as minhas palavras e silêncios, arrisca-se a idealizar a nossa relação e a eleger-me o bom-da-fita. O que não só é falso como é

negativo para si ficar dominada pelo medo que eu a abandone.

Ora, nem a leitora nem eu somos apenas bom ou mau de todas as fitas que vamos vivendo.

- Não percebi nada avô quando, há tempos, me disseste que há pessoas que se complementam negativamente. Complementar-se saudavelmente, criar empatia entre as pessoas, julgo que percebi.

- Deixa-me contar-te uma história, triste por sinal. Era uma vez um jovem casal que desejava muito ter filhos. Três anos depois do nascimento de um rapaz, os pais divorciaram-se e estabeleceu-se entre eles uma disputa sobre qual dos pais amava mais a criança e era mais amado por ela.

Ambos viviam obcecados para não ser o mau da fita e, para mostrar o amor ao filho, multiplicavam-se, cada um deles por seu lado, em carinhos, presentes, etc. Aqui está um exemplo de a criança se ver envolvida numa guerra que não era sua mas que, para além do sofrimento dela e de cada um dos pais, resultava numa tentativa de posse narcísica da criança, o que a infantilizava. Cada um deles amava-se a si próprio na medida em que a criança era apenas um prolongamento de si.

- Quer dizer, avô, que essa triste história é o que se passa com quase metade dos colegas da minha turma, que são filhos de pais separados?...

- A história que te contei é triste porque triste é toda a ruptura na continuidade do devir, do acontecer. Infelizmente existem cada vez mais casos de pais separados e famílias monoparentais, mas, da mesma maneira que existem dias nublados, há também dias de sol. É um exemplo um pouco simplista, mas que é escolhido de propósito para te dizer que há muitas coisas que nós gostamos menos ou não gostamos de todo mas que temos que aprender a lidar com elas, contorná-las, reinventar a vida. Nesta situação, por exemplo, que eu conheci pessoalmente, tudo

acabou em bem, mas para o merecerem foi preciso os três comerem o pão que o diabo amassou.

03 agosto 2009

26. Ajustar contas com a vida




"Sinfonia nº9 IV" de Beethoven

Saberá por certo que todos quantos alguma vez se sentiram mal-amados, abandonados, excluídos, se arriscam a passar o tempo a ajustar contas com a vida, violentando-se e aos outros.

Como uma vez mais nos ensina John Steinbeck em A Pérola: numa pacífica aldeia de pescadores perdida na memória dos tempos em remotas paragens, como ainda hoje, aqui e agora, uma qualquer pessoa pobre descobre uma pérola de invulgar beleza e inestimável valor. Os pescadores e suas famílias, que sempre partilharam com alegria os riscos e a dureza da vida de pescadores de pérolas, transformam-se em invejosos rivais. Esta insuspeitável violência, entre as famílias e dentro da própria família, só foi resolvida quando o pescador devolve a pérola ao mar, qual exorcismo do mal! E o que é curioso na noção de mimésis, como na belíssima história de Steinbeck, é que aquilo que une pacificamente as pessoas é uma situação que os aproxima a todos, apesar da extrema pobreza e sacrifícios. Na mimésis como n’A Pérola tudo seria diferente se todos tivessem encontrado pérolas gigantes.
Não é, por conseguinte, a mística miserabilista que salva os desgraçados e pobres humanos, mas a igualdade de oportunidades, boas ou menos boas, para todos.